Marina Morena
ou
A morte de Koschei, o Imortal

Nesta história, o príncipe Ivan Barãozinho e a sua esposa, a rainha guerreira Marina Morena, vencem juntos o temível feiticeiro, Koschei, o Imortal, passando por inúmeras aventuras no percurso.

Da adaptação

Esta história é tão cheia de histórias que não tive coragem de divergir muito das fontes: eu meio que a contei nas minhas palavras, sem grandes alterações — exceto o final. A lenda de Koschei, o Imortal, conta que o bruxo escondeu a sua morte numa agulha dentro de um ovo dentro de um pássaro dentro de uma lebre dentro de um baú em cima de uma árvore numa ilha mágica muito difícil de encontrar; no conto de Marina Morevna, porém, a rainha corta o caminho, queimando o bruxo e espalhando as suas cinzas no ar; eu trouxe um pouco daquela lenda para a nossa versão.

Sobre os nomes

Ivan Tsarevich é um personagem muito recorrente no folclore russo, sendo o herói de muitos contos, frequentemente em conflito com Koschei, o Imortal. “Tsarevich” é um título dado aos filhos de tsares ou czares, que é o nome eslavo para “imperador”. Como em outros contos, troquei “rei” por “barão”, e, neste caso, no lugar do patronímico (-vich, “filho de”), usei um diminutivo, -zinho.

A heroína é Marya Morevna. Maria, até que tudo bem; mas Morevna significa, imagino, algo como “filha do mar”. Eu pensei em várias opções, mas a que mais gostei foi de “Marina”. Mas “Maria Marina” ficava um pouco repetitivo, e perdia a brincadeira mais óbvia — que é trocar “Morevna” por “Morena” (que, em francês, é I love you). Então troquei Maria por Marina e Morevna por Morena: Marina Morena.

Não quis mexer nos nomes dos antagonistas mais frequentes do folclore eslavo, Koschei, o Imortal, e Baba Yaga.

Como esta é, talvez, a mais longa história que já publicamos, ela está dividida em seções, cada uma com um breve título. Espero que vocês gostem!

Boa leitura!

Três Bodas

Era uma vez um rei e uma rainha que tinham quatro filhos: Ivan Barãozinho, Aninha, Julinha e Luizinha. Um dia, o rei e a rainha viajaram e morreram e ficaram só o rapaz e as moças.

Num belo dia, os irmãos caminhavam pelo jardim quando viram um pássaro majestoso voando alto no céu: era uma águia enorme, que voava com velocidade e audácia, dando voltas em torno deles nas alturas antes de dar um mergulho muito rápido e, com um giro de corpo, pousar nos pés dos irmãos na forma de um jovem belíssimo.

“Princesa Aninha do Reino de Tal e Tal, eu sou o Príncipe Águia e vim até aqui pedir-lhe que se case comigo!”

E a princesa revelou que já paquerava o Príncipe Águia há algum tempo e todos concordaram com o casamento, que se celebrou ali no castelo e foi muito bonito; e depois a irmã mais velha se foi com seu marido para o Reino das Águias.

Passaram alguns meses e, num belo dia, os irmãos caminhavam pelo jardim quando avistaram um belo falcão, veloz como o vento, fazendo uma volta enorme no céu e vindo pousar com uma manobra precisa aos pés dos irmãos, na forma de um rapaz vistoso e elegante: “Princesa Julinha de Tal e Tal, venho pedir-lhe sua mão em casamento!”

Os irmãos viram o quanto o Príncipe Falcão agradava à irmã do meio e todos concordaram com o casamento, que se celebrou ali no castelo e que foi muito feliz; e a moça também partiu com seu marido para viver no Reino dos Falcões.

Passou um tempo e os irmãos novamente caminhavam quando, desta vez, viram uma revoada de corvos que trouxeram muitos presentes brilhantes e deixaram aos pés da caçula, enquanto um corvão fazia uma cambalhota no ar, pousando no chão um rapagão alto e gentil, que disse: “Princesa Luizinha de Tal e Tal”, a lenga-lenga toda, e os dois também se casaram e a moça partiu para viver no reino do Príncipe Corvo, deixando sozinho o irmão Ivan Barãozinho para cuidar do reino de Tal e Tal.

E o rapaz ficou bem feliz pela felicidade das irmãs e, por gostar de cuidar do castelo, e se mostrou um líder justo e bondoso, e todos gostavam dele. 


Mas essa não era a história de como as irmãs de Ivan Barãozinho se casaram com príncipes magos alados, ou de como ele ficou herdeiro das terras do reino de Tal e Tal, mas de como ele encontrou e pôs fim em Koschei, o Imortal. Mas, antes de encontrar o bruxo, Ivan Barãozinho encontrou um grande amor numa rainha guerreira chamada Marina Morena. E foi assim:

A rainha guerreira

Passado um ano do casamento da sua irmã caçula, Ivan Barãozinho sentiu muita saudade das irmãs. Então, decidiu partir em viagem para visitá-las: deixou tudo organizado no castelo, preparou alguns suprimentos e montou em seu cavalo para a longa viagem.

Num certo ponto do caminho, ele avistou abutres voando alto no céu; cavalgou mais um pouco e viu fumaça; mais um pouco e encontrou um campo de batalha com centenas de mortos no chão. Admirado do estrago, perguntou em voz alta: “Se houver algum sobrevivente, diga-me: quem é o responsável por este estrago?” Um rapaz moribundo respondeu, pedindo água, que Ivan lhe deu, e contou que aquilo tudo era obra de uma princesa guerreira chamada Marina Morena.

Ivan cavalgou mais um pouco e chegou ao acampamento do exército vitorioso. 

Quem o recebeu foi a própria rainha valente, que perguntou-lhe: “Olá, príncipe! Para onde o destino vos trouxe! Vindes por vossa própria vontade ou contra ela?”

“Homens valorosos não vão contra a própria vontade!”, respondeu Ivan Barãozinho, topetudo.

Então, a rainha guerreira Marina Morena recebeu-o com hospitalidade, convidando-o para jantar, e os dois conversaram até o sol raiar e passaram o outro dia juntos e mais um, e algumas semanas passaram tão rápido quanto minutos, e os dois se afeiçoaram muito um ao outro e decidiram se casar.

Eles se casaram no acampamento mesmo e seguiram viagem até o reino de Marina Morena. Depois de alguns dias, a rainha Marina Morena disse ao Ivan Barãozinho que precisava fazer mais uma viagem e que voltaria logo, deu-lhe um molho de chaves e disse:

“Aqui estão as chaves do meu castelo: deixo-o sob seus cuidados. Você é livre para entrar em qualquer cômodo e fazer o que quiser, só lhe peço que não entre na adega.”

Pois você faria o quê? Exatamente igual Ivan Barãozinho: andaria de um lado pro outro, tentando deixar a curiosidade pra lá, cuidaria da sua vida, mas nalgum momento acabaria cedendo e decidindo dar pelo menos uma espiadinha na adega proibida!

O feiticeiro

Então, uma bela tarde, o príncipe, não se aguentando de curiosidade, abriu a adega e o que ele encontrou? Um homem velho, magro, fraco, que mais parecia um trapo ou um tronco seco de uma árvore morta do que uma pessoa, acorrentado naquele calabouço. E o homem virou para Ivan e suplicou com uma voz que parecia o raspar de galhos de árvore, terras deslizando ou quando a gente pisa em pedriscos bem pequenos:

“Rapaz, tenha dó de mim, dê-me de beber, há mais de dez anos que estou preso aqui sem bebida nem comida!”

Ivan Barãozinho, que era gentil e generoso, compadeceu-se do homem e trouxe-lhe um balde d'água. O velhote engoliu a água toda de um gole só e gritou com a voz do coaxar de mil sapos:

“Mais!”

E o príncipe trouxe-lhe mais um balde e o velho engoliu-o de um gole só, e gritou com a voz de um urso rouco:

“Mais!”

E o rapaz trouxe um terceiro balde d'água para o estranho velhote, que já tinha um brilho diferente nos olhos, e que o bebeu de um gole só, deu um arroto que parecia o som de um arado cortando a terra seca, e arrebentou de um só golpe as doze correntes que o prendiam.

“Obrigado, príncipe Ivan Barãozinho, do reino de Tal e Tal, esposo da rainha Marina Morena do reino de Tal e Coisa, graças à sua bondade, estou livre! Livre! Vou poupá-lo em respeito à sua gentileza; mas não espere mais do que isso de Koschei, o Imortal! Esqueça sua esposa, de quem me vingarei agora mesmo. Nunca mais a verá!” E o velho escarrou no chão um cuspe preto que se transformou num cavalo enorme, furioso, no qual o feiticeiro montou e saiu galopando mais rápido do que o vento.

O príncipe Ivan ficou ali, atônito, sentado no chão onde caíra, tamanho o susto.

“O que eu fiz?”, ele se perguntava. “Por que não dei ouvidos à Marina?” — e ele chorou um pouco, sem saber o que fazer. Por fim, levantou-se, montou em seu cavalo e partiu. Ele decidira que não se deixaria abater até resgatar sua esposa do terrível vilão.

Então, ele procurou seus cunhados, que eram homens sábios, magos eles mesmos, para descobrir como encontrar o caminho até Marina Morena.

Os reis pássaros

Primeiro, ele cavalgou até o Reino das Águias, onde reinava o seu cunhado, Príncipe Águia, e a sua irmã Ana. Lá chegando, abraçou a irmã e o cunhado, chorou bastante por reencontrá-los e contou toda a sua história. O Príncipe Águia consultou-se com os seus livros, investigou mapas e deu um astrolábio de presente ao cunhado. Ensinou-o a usá-lo para encontrar seu caminho e pediu que Ivan deixasse com ele algum item de prata. Ivan deixou-o com o seu brinco, montou no cavalo e seguiu para visitar sua irmã do meio.

No Reino dos Falcões, ele foi recebido com festa. Beijou e abraçou sua irmã Julia e seu cunhado Príncipe Falcão, chorou bastante e contou-lhes a sua história. Então, o príncipe consultou seus oráculos e deu um sextante de presente para Ivan, ensinou-o a usá-lo e despediu-se, não sem antes pedir-lhe um item de prata. Ivan deixou-o com seu anel e seguiu em direção à casa de sua irmã caçula.

Ao chegar no Reino dos Corvos, foi recebido com alegria. Abraçou a sua irmã Luiza e o seu cunhado Príncipe Corvo, chorou bastante e contou-lhes a sua história. O Príncipe Corvo consultou os astros e deu-lhe de presente uma luneta; antes de se despedir, pediu-lhe um item de prata, e Ivan deixou-o com um pingente, despediu-se e, usando os aparelhos que ganhara de seus cunhados sábios, partiu em direção às terras do outro lado, em busca de sua amada, Marina Morena.

Os resgates de Marina Morena

E Ivan cavalgou longamente, por muitos dias, seguindo o rastro de Koschei e seu cavalo encantado, em busca de sua companheira Marina Morena, até que um dia encontrou um casebre, e ouviu a voz de Marina cantando um lamento triste. Entrou no casebre de supetão e resgatou-a das correntes que a prendiam e os dois se abraçaram e beijaram e choraram muito pelo reencontro.

Quando Ivan fez menção de partir, porém, Marina hesitou:

“Koschei é muito poderoso e seu cavalo é o mais veloz do mundo, Ivan. Ele nos alcançará e irá fazê-lo em pedaços!”
“Pois que me faça em pedaços! Não posso deixá-la aqui!”, disse o rapaz.

E os dois partiram.

Logo depois, Koschei retornou, montado em seu cavalo mágico, que ficou agitado.

“O que foi, alazão, por que hesita?”

“Porque Ivan Barãozinho esteve por aqui e partiu com a rainha Marina Morena!”, respondeu-lhe o cavalo.

“Aquele miserável!”, gritou Koschei. “Diga-me, alazão, há tempo para alcançá-los?”

“Há tempo”, respondeu o cavalo, “para arar o campo e semear o trigo e esperá-lo germinar e crescer, colhê-lo e secá-lo e moê-lo na pedra e amassar a farinha com fermento e esperá-la crescer e assar os pães e comê-los, e ainda assim, Koschei, alcançá-los”, respondeu o cavalo, arrogante.

E os dois partiram e em alguns instantes alcançaram os heróis.

“Ivan Barãozinho, eu deveria saber! Você é muito valente e atrevido. Mas nem a sua valentia, nem a bravura da rainha Morena estão à altura dos meus poderes! Vou poupá-lo uma segunda vez, como pagamento pelo segundo balde de água que me deu; mas não quero vê-lo nunca mais!”, disse Koschei e, com um estalo dos dedos transportou Ivan de volta para o castelo de Marina Morena.

O rapaz chorou mais um pouco e, novamente, levantou-se, montou no cavalo e procurou a sua amada.

Então, passado um bom tempo, encontrou uma torre muito antiga, e ouviu um lamento triste na voz de Marina Morena, entrou na torre e os dois de novo se abraçaram e riram e choraram, e desta vez a rainha ficou ainda mais hesitante: “Koschei já te poupou uma vez, você não terá a mesma sorte de novo!”, disse ela, resignada: “Ele vai fatiar você em pedacinhos!”

“Pois mesmo que ele me fatie em mil pedaços e me dê de comer às feras, ainda assim eu a resgataria!”, respondeu Ivan, e os dois partiram.

Novamente, Koschei retornou à sua torre com o cavalo inquieto. “O que houve, alazão?”, disse o bruxo, e: “Ivan Barãozinho esteve aqui e partiu com a rainha Marina Morena outra vez” respondeu-lhe o cavalo.

“Aquele tratante! Há tempo de alcançá-los?”

“Há tempo”, respondeu o cavalo, “de arar a terra e plantar a cevada e esperá-la germinar e crescer e colhê-la, secá-la ao sol e deixá-la fermentar até fazer cerveja e bebê-la até adormecer de bêbados e acordar e só depois sair — e ainda assim alcançá-los”, respondeu o cavalo.

E os dois partiram e alcançaram o casal, e Koschei gritou que aquela fora a última chance de Ivan e que se o encontrasse novamente faria picadinho dele. Estalou o dedo e, zás!: Ivan estava de volta no castelo de Marina Morena.

Mais uma vez Ivan chorou, mas lembrou-se de seu juramento para si mesmo e partiu no encalço do vilão, encontrando um castelo de gelo onde ouviu cantar triste a sua amada Marina Morena.

De novo, ele adentrou o covil de Koschei, e de novo resgatou Marina — que, novamente, hesitou, com medo do destino de Ivan, que também novamente ignorou o risco e levou-a consigo.

Mais uma vez, Koschei chegou, seu cavalo hesitou, e ele perguntou porque; mais uma vez o cavalo disse-lhe que Ivan havia resgatada Marina; e Koschei, outra vez, se enfureceu.

Desta vez, Koschei não poupou Ivan: dissera que faria picadinho dele, e assim o fez. Ivan foi cortado em mil pedacinhos. Koschei enfiou os pedacinhos de Ivan em um barril, selou com piche e amarrou com argolas de ferro e jogou-o no mar.


Assim foi o fim de Ivan Barãozinho... Mas não da sua história.

Águas da vida e da morte

Nas casas das suas irmãs, os seus itens de prata ficaram pretos, e elas e os seus companheiros perceberam que algo de ruim havia acontecido com Ivan.

Então, os reis feiticeiros-aves consultaram os seus livros, oráculos, astros e o que mais, e partiram numa jornada em busca do cunhado.

O Príncipe Águia viajou por nuvens tenebrosas e tempestades violentas até chegar ao oceano; e teria sido uma viagem muito difícil, pois o oceano não é fácil para qualquer ave navegar, se não fosse a ajuda do Mar, que era parente de Marina, e que fez algum acordo para os ventos ajudarem-no a chegar até o ponto em que encontrava-se o barril, que ele carregou embora. O Príncipe Falcão viajou por um longo caminho até um castelo imenso, com um gigantesco portão preto de ferro, onde ficava uma fonte mágica, a fonte da Água da Vida (que é de uma outra história). Enquanto isso, o Príncipe Corvo viajou até o submundo, o reino dos mortos, até um castelo imenso, com um gigantesco portão de marfim, onde ficava uma fonte mágica, a fonte da Água da Morte.

Os três se encontraram, cada um com seu tesouro — o barril onde jaziam os pedacinhos que um dia foram Ivan Barãozinho, um frasco com a Água da Vida, e um com a Água da Morte — em terra firme.

Lá, cuidadosamente ordenaram os pedaços de Ivan na forma de uma pessoa e, com a Água da Morte, fizeram com que os pedaços se juntassem num corpo; depois, lavaram aquele cadáver com a Água da Vida — e, de repente, o corpo de Ivan Barãozinho ganhou vida, deu um bocejo e soltou um peido tão alto que até assustou os cunhados.

“Ora, como vim parar aqui?”, ele perguntou.

E todos choraram de felicidade e se abraçaram, e partiram de volta para o reino de Tal e Tal para celebrar o renascimento de Ivan Barãozinho.

O plano

Depois da festa, Ivan sentou-se com as irmãs e os cunhados para planejar o resgate de Marina Morena.

Os reis magos e suas sábias esposas aconselharam Ivan que insistir nos resgates não teria resultado diferente de ser picado em pedacinhos — e avisaram-no que, se Koschei destruísse um pedacinho que fosse, eles não poderiam resgatá-lo mais do mundo dos mortos.

“A única solução, meu irmão, é matar Koschei, o Imortal!”, disse a irmã mais velha, Ana.

Mas como se mata um imortal?

E não sou só eu quem pergunta. O próprio Ivan fez exatamente essa mesma pergunta:

“Mas como se mata um imortal?”

Então as irmãs e os cunhados explicaram a ele sobre o feitiço que o feiticeiro maligno usara para tornar-se imortal, e contaram-lhe a história de Koschei, o Imortal, e ela era assim:

A história de Koschei, o Imortal

Koschei era um homem ruim, ruim de tudo, mais amargo que remédio, capaz de vender a própria mãe em troca de qualquer vantagenzinha que visse. E bota “era” nessa vez, pois esse homem, de tão ruim, ficou imortal e viveu por milênios, sendo ruim, do mesmo jeito, até cada vez pior!

Ele ficou conhecido como “o imortal”, ou “o desalmado” — porque, para ficar imortal, o que ele fez foi esconder a própria morte tão bem escondido que ninguém nunca a encontrava (nem a Morte), e assim ele foi seguindo vivo por muitos e muitos anos, acumulando maldades na sua conta, a Morte sempre com ele no topo da sua lista, mas incapaz de levá-lo por nunca encontrar a morte dele.

É um feitiço simples, no fundo: você pega e tira a sua morte de dentro de você e a esconde nalgum lugar seguro; enquanto ninguém conseguir encontrá-la, você seguirá vivendo, sem que a Morte possa pôr fim à sua existência. Alguns dizem que a sua morte é o seu coração, outros algo mais elusivo — um sonho, uma lágrima, uma lembrança. Eu não sei se vale a pena viver tanto assim pensando que a sua morte está segura em outro lugar, isso não deve fazer bem pra cabeça. Com certeza não faz para o coração. Aposto que Koschei ficou pior por viver sabendo que era imortal.

“Então, o que vocês estão dizendo”, disse Ivan, “é que eu preciso encontrar a morte de Koschei e destruí-la?”

“Exatamente! Peça para Marina Morena descobrir onde ele a guarda, depois vá até lá e a destrua!”, responderam-lhe as irmãs.

“Mas para poder fazer isso, eu preciso”, disse ele, “de um cavalo tão rápido quanto o cavalo de Koschei, o Imortal. Onde posso consegui-lo?”

“Esses cavalos só existem em um lugar no mundo inteiro”, disseram-lhe as irmãs: “No estábulo de Baba Yaga, a bruxa!”

O potro de Baba Yaga

Então, as irmãs orientaram-no sobre como chegar até lá: depois de uma longa e confusa viagem, passando por treze reinos, o príncipe Ivan encontraria um rio de fogo e, para atravessá-lo, lançaria um novelo de lã, especialmente preparado pelas suas irmãs e seus maridos feiticeiros, até o outro lado, e o novelo se transformaria numa magnífica ponte.

Então, o príncipe juntou algumas provisões e partiu, seguindo o caminho que lhe fora apontado pelas irmãs: a oeste do brilho do orvalho pela manhã, com a estrela Dalva ao alcance do braço, seguindo o perfume das centáureas, etc. — direções desse tipo, que servem mais para a gente se perder do que se encontrar (pois é preciso perder-se para ir até o outro lado da colina, onde vivem os monstros, as fadas, as bruxas e as histórias).

E depois de muito viajar, já faminto, sedento, cansado, maltrapilho, chegou até um rio de fogo, que era muito mais assustador do que ele podia imaginar. Amarrou uma ponta da lã mágica numa estaca e lançou o resto novelo com tanta força quanto pôde juntar até o outro lado e, de repente, havia, diante dele, uma ponte de mármore liso e brilhante, sólida, sobre o rio perigoso. Então ele atravessou e seguiu a sua viagem.

Do lado de lá do rio de fogo, ainda havia muito caminho a percorrer; mas as provisões de Ivan haviam acabado e ele sobrevivia de comer alguma fruta ou capim que encontrava, de ferver bagos de árvores estranhas, de pequenos animais que conseguia encontrar. Num belo dia, encontrou um ninho de um estranho pássaro, com filhotes gordos e apetitosos. Capturou um deles e estava prestes a matá-lo quando ouviu uma voz que parecia o grasnar de um ganso:

“Nobre cavaleiro, suplico-lhe, por favor, não coma o meu filhote! Eu ficarei eternamente endividada com você e o compensarei como puder!”, disse uma ave enorme.

Então, Ivan soltou a estranha perdiz e seguiu o seu caminho.

Caminhou mais um pouco e encontrou uma imensa colmeia. “Vou comer favos de mel!”, disse consigo e foi em direção à colmeia. Então, ouviu uma voz que soava como um enxame de vespas: 

“Nobre cavaleiro, suplico-lhe, por favor, não destrua a minha colmeia! Eu ficarei eternamente endividada com você e o compensarei como puder!”, disse a abelha rainha.

Então, Ivan deixou a colmeia em paz e seguiu o seu caminho.

Caminhou mais um pouco naquela terra estranha, onde não conseguia encontrar mais nenhum animal para capturar nem frutas para comer, até que encontrou um filhote de leão. Quando ele havia capturado o bichinho, ouviu uma voz, grave como um mugido:

“Nobre cavaleiro, suplico-lhe, por favor, não devore o meu filhote! Eu ficarei eternamente endividada com você e o compensarei como puder!”, disse-lhe uma leoa enorme.

Então, Ivan deixou os leões em paz e seguiu o seu caminho.

No final da tarde, ele avistou fumaça. Seguiu em sua direção e já anoitecia quando ele encontrou um casebre de madeira com enormes pernas de galinha: à frente dele, havia um círculo com doze estacas, com cabeças penduradas em onze delas — algumas eram apenas crânios, uns escurecidos, outros embranquecidos; outras, cadáveres em diferentes estágios de decomposição. Uma das estacas estava vazia.

“Boa noite, vovó!”, disse ele, respeitosamente.

“Boa noite, Ivan Barãozinho, príncipe de Tal e Tal”, respondeu-lhe uma velha alta que tinha uma pele cinzenta que parecia coberta de líquen, com mais dentes do que deveria, todos afiados como os dentes de um lobo, e unhas compridas como as de um leão. “Para onde o destino vos trouxe! Vindes por vossa própria vontade ou contra ela?”

“Vim em busca de um de vossos potros mágicos”, respondeu-lhe Ivan Barãozinho.

A velha riu um riso sinistro e disse:

“Muito bem, príncipe Ivan, servir-me-eis por três dias: se puderes cuidar de minhas éguas sem deixar que nenhuma escape, dar-vos-ei um de seus potros; em caso contrário, não vos aborreçais, mas vossa cabeça enfeitará minha última estaca!”

Ivan Barãozinho concordou e Baba Yaga deu-lhe comida e bebida, roupas quentes e abrigo para a noite e, no dia seguinte bem cedinho, mandou-o cuidar das águas. Mal haviam chegado no pasto, as éguas relincharam, empinaram e saíram correndo desembestadas. Ivan ficou olhando aquilo atônito, sem saber o que fazer: ele estava confiante de saber como cuidar das éguas e ganhar o cavalo que lhe permitiria resgatar Marina Morena das garras de Koschei, o Imortal, e de alcançar a morte do bruxo antes que o mesmo o alcançasse, e enfim, acabar a história. Mas não conseguira cuidar nem um minuto sequer das éguas mágicas de Baba Yaga!

Sentou-se no chão, abraçou os joelhos e adormeceu chorando de raiva e frustração e tristeza. De repente ouviu um voz, grasnando, que lhe disse: “Príncipe Ivan! Depressa! Corra de volta aos estábulos pois as éguas estão reunidas lá!”

E ele correu e lá estavam as éguas, reunidas, quietas.

Depois que Ivan adormeceu, Baba Yaga foi falar com elas: “Por que vocês não fugiram? Por acaso querem deixar Ivan Barãozinho escapar?”

“Como poderíamos fugir”, disse uma das éguas, “se, de repente, aves de todas as partes do céu desceram a nos bicar?”

No outro dia, lá foi Ivan Barãozinho com as éguas e de novo elas fugiram. Desta vez, ao invés de se espalharem pelo campo, elas mergulharam na água, ficando apenas com a cabeça de fora — e riram de Ivan Barãozinho, que lamentou-se e chorou até dormir. De repente, ouviu um zumbido chamando o seu nome: “Príncipe Ivan! Depressa! Corra de volta aos estábulos pois as éguas estão reunidas lá!”

E lá chegando, de novo, encontrou-as lá. E Baba Yaga questionou as éguas de novo, e as éguas: “Mas como poderíamos fugir se, de repente, surgiram enxames de abelhas e vespas e mutucas de todas parte a nos picar!”

No terceiro dia, lá foi Ivan com as éguas e elas correram de novo, embrenhando-se num bosque espesso. E, de novo, Ivan chorou até adormecer, e novamente acordou com um rugido que chamava o seu nome: “Príncipe Ivan! Depressa! Corra de volta aos estábulos pois as éguas estão reunidas lá! Mas, desta vez, não confie em Baba Yaga: no calar da noite vá até o estábulo e apanhe o potro que está lá, e atravesse rápido para o outro lado do rio de fogo!”

Outra vez, encontrou as éguas reunidas. Quando questionadas, elas disseram a Baba Yaga que foram perseguidas por um grupo de leões e lobos e ursos e outras feras.

Então, à noite, Ivan roubou um potro e correu até a ponte. Quando ia degolá-lo em seu sono, Baba Yaga descobriu a sua fuga, montou um seu pilão voador e saiu voando no encalço de Ivan. Assim que cruzou a ponte, Ivan bateu no fio de lã, e ela ficou fina como um cabelo. Baba Yaga parou do outro lado. Uns dizem que ela tentou cruzar a ponte, fina como um cabelo, para encontrar uma morte horrenda no rio de fogo; outros, que ela gritou do lado de lá:

“Você está aí do outro lado, Ivan Barãozinho.”

“Estou, embora isso seja difícil para você.”

“E você roubou um potro meu.”

“Um potro que você me prometera; sim, embora isso seja difícil para você”

“E quando você estará de volta, Ivan Barãozinho?”

“Eu vou para onde quiser, quando desejar! Volto quando tiver assuntos a resolver por aqui.”

Mas só Ivan Barãozinho e Baba Yaga é que sabem com certeza o que aconteceu.

Quando chegaram do outro lado do rio, o potrinho virou uma égua enorme, de pelos pretos como a noite e com uma estrela na testa. Ele pediu licença para montá-la, contou-lhe sua história e, em questão de segundos, estavam no castelo distorcido e horroroso de Koschei, o Imortal!

A morte de Koschei, o Imortal

Ivan Barãozinho reencontrou sua amada, a rainha Marina Morena, como das outras vezes, os dois se abraçaram, se beijaram e choraram um pouco. Então, o príncipe contou à rainha tudo o que ocorrera e pediu-lhe que especulasse com Koschei, o Imortal, em busca de pistas para encontrarem a sua morte.

Antes que Koschei voltasse, Ivan Barãozinho partiu e se escondeu em algumas cavernas.

Marina Morena começou a provocar Koschei: ela dizia que ele enfrentaria uma morte horrorosa pelas suas próprias mãos e seguia descrevendo as várias maneiras em que mataria o velho bruxo — mas Koschei só ria.

Por fim, a soberba venceu a prudência e Koschei revelou o motivo da sua diversão:

“Eu sei, rainha, que na menor oportunidade vós me mataríeis, e faríeis picadinho de mim; que queiMarina meu cadáver e espalharia minhas cinzas no vento; que seríeis capaz das maiores atrocidades se assim vos aprouvésseis — mas nada disso serviria, pois a minha morte está oculta, protegida de vós e da própria Morte: vede, teríeis que viajar até uma certa ilha num rio de fogo, encontrar ali uma centenária árvore retorcida, escalá-la até o topo, encontrar um baú, abrir o baú com cuidado para capturar a lebre que está presa dentro dele, abrir a barriga da lebre com cuidado para pegar o pássaro que ela engoliu antes que ele alce vôo, matá-lo para remover o ovo dentro dele, quebrar o ovo e encontrar uma semente— destruí-la e, só então, rainha Marina Morena, só então poderíeis me matar! Hahahahahaha!”

Eu não sei você, mas a rainha tinha uma memória muito boa e era uma mulher atenta. Ela registrou tudo tintim por tintim e, quando Koschei saiu novamente, contou tudo ao Ivan Barãozinho.

O príncipe voltou ao rio de fogo e encontrou a ilha misteriosa e, nela, a árvore retorcida. A árvore era muito alta para ser escalada e ele ficou ali perplexo, sem saber por onde começar, quando apareceu a estranha ave cujos filhotes ele havia poupado. Ela subiu até as nuvens e, depois de um tempo, voltou com um pequeno baú nas garras. Ivan abriu o baú com cuidado, mas mesmo assim de dentro dele saltou uma lebre muito veloz e sumiu de vista, sem que ele conseguisse capturá-la. Mas, como um tiro, surgiu a leoa, cujo filhote ele havia poupado e — lau! — pegou a lebre e a trouxe nos dentes. Ivan festejou muito e abriu a barriga da lebre com cuidado; mesmo assim, porém, de dentro da barriga da lebre, um passarinho miúdo saiu voando rapidamente, subindo no ar. Ivan lamentou o seu azar, mas ouviu um zumbido e logo viu cair o pássaro, picado por milhares de abelhas. De dentro do pássaro, tirou um ovo azul que quebrou; dentro dele, encontrou uma semente que, ao ser lançada no rio de fogo, fez um clarão e queimou com muitas fagulhas roxas e verdes, soltando uma fumaça e um ruído horríveis, antes de sumir de vez. 

Ele tinha destruído a morte de Koschei, o Imortal!

O príncipe montou em sua égua mágica e cavalgou como um tiro até o castelo para resgatar Marina Morena. Os dois se abraçaram e beijaram e choraram de felicidade, montaram e saíram voando de lá. 

O cavalo de Koschei hesitou em seus passos e o bruxo perguntou-lhe:

“O que foi, alazão, por que hesita?”

“Porque Ivan Barãozinho esteve por aqui mais uma vez e partiu com a rainha Marina Morena!”, respondeu-lhe o cavalo.

“Aquele maldito cabeça dura!”, gritou Koschei. “Diga-me, alazão, há tempo para alcançá-los?”

“Isso, Koschei, eu não sei — pois, agora, ele tem um cavalo tão veloz quanto eu.”

Então Koschei esporou seu cavalo até machucá-lo e os dois voaram ainda mais velozes do que antes, alcançando Ivan, Marina e a sua égua.

Então, a égua do casal gritou: “Amado irmão mais velho, o que fazes seguindo esse homem cruel? Por que não dá logo um fim nele? Ele não é mais poderoso quanto pensa”.

E o cavalo de Koschei freou bruscamente, derrubando o feiticeiro no chão, deu uma volta e soltou um coice bem na testa de Koschei, que não era mais imortal. Depois relinchou alto e correu por cima de Koschei algumas vezes, pisando os cascos tão forte que soltavam faíscas.

Dizem que, quando se deu conta, Koschei encontrou, ao lado do monte de sangue e ossos pisados que era o seu cadáver, a Morte esperando, de braços cruzados, satisfeita, e que ela levou-o rindo alto, enquanto o velho bruxo amaldiçoava, furioso, Ivan Barãozinho e a rainha Marina Morena, inutilmente.

Depois de queimar os restos de Koschei e espalhar as cinzas no vento, a rainha montou o cavalo do bruxo e o casal viajou de volta para casa, passando pelos reinos do Corvo, da Águia e do Falcão, no caminho, onde festejou-se muito o resgate da rainha e a morte de Koschei, que fora imortal.

Fontes

W. R. S. Ralston. The Death of Koschei the Deathless. In: Andrew Lang (ed.), The Red Fairy Book (1890). Disponível em https://en.wikisource.org/wiki/The_Red_Fairy_Book/The_Death_of_Koschei_the_Deathless.

W. R. S. Ralston. Koschei, the Deathless. In: Russian Fairy Tales: A choice collection of muscovite folk-lore (New York, 1872). Disponível em: https://www.gutenberg.org/cache/epub/22373/pg22373-images.html#Page_111.

Fonte da imagem de capa

Viktor Vasnetsov, Кащей Бессмертный [Koschei, o Imortal]. Óleo sobre tela, c. 1917-1926. Wikimedia Commons, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?title=File:Viktor_Vasnetsov_Kashchey_the_Immortal.jpg&oldid=705790746.