O homem, a serpente e a raposa

Onde hoje é uma represa, ali onde tem a ponte, antigamente era uma cachoeira forte, que fazia um barulhão. No entorno do piscinão, havia muitas rochas e, um dia, um pescador encontrou presa nas rochas uma cobra imensa, mas bem fraca, magra, que lhe implorou ajuda: “Senhor, por favor, me ajude! Estou presa nas rochas e à beira da morte!”

“Ora, e quem me garante que, ao soltá-la, você não vai me devorar?”

“Eu juro ao senhor, por tudo o que há de sagrado, que não o farei!”, jurou a cobra.

Então, o homem libertou-a das rochas. A cobra esticou-se agradecida no sol, enrolou-se num monte e, levantando a cabeçorra, abriu um bocão deste tamanho, dizendo:

“Agradeço, meu senhor, por me libertar; mas, agora, vou devorá-lo!”

O homem, que conseguiu usar a vara para mantê-la a distância, ficou indignado:

“Como assim, senhora, depois de ter jurado que não o faria?”

“A fome, senhor, não respeita compromissos”, respondeu-lhe a cobra — não sem razão.

“Mas isso é errado!”, insistiu o homem. E eles discutiram um pouco sobre aquilo.

A cobra insistiu que a fome como que suspendia a imoralidade de seu ato, que ficava legitimado pela urgência de sua situação; o homem, que seria o principal prejudicado, insistia que, senão pelo compromisso, pelo menos em nome da gratidão, ele deveria ser poupado. Os dois ficaram naquela impasse, até que decidiram: pediriam aos três primeiros que encontrassem um parecer a respeito.

Entraram no bosque e encontraram um cachorro. Explicaram a situação e o cachorro deu o seu veredicto: “Você deveria sim comê-lo, serpente. Eu mesmo, tive um dono humano, a quem servi lealmente por muitos anos. Assim que fiquei velho demais para ajudá-lo a caçar, ele me amarrou aqui no bosque para morrer. Assim é com os homens, amiga serpente: tudo o que ganhamos é ingratidão!”

“Viu só?”, disse a serpente ao pescador, enquanto ele desamarrava o cachorro, e os dois seguiram em seu caminho.

Encontraram, então, um cavalo muito magro amarrado a um tronco. Fizeram-lhe a mesma pergunta.

“Ah, senhora serpente, acho legítimo o seu pleito! Eu mesmo, depois de servir lealmente o meu amo por muitos anos, carregando-o nas costas e puxando suas cargas até quebrar as minhas costas, só para ser abandonado aqui no bosque para morrer depois de velho e fraco! Os humanos só nos pagam com ingratidão!”

O homem desamarrou o cavalo enquanto a serpente se mostrava satisfeita. “Está vendo?”, ela disse. “Estou justificada em comê-lo!”

“Vamos ouvir o próximo juiz”, respondeu-lhe o pescador.

Então, os dois caminharam um pouco e encontraram a raposa.

Contaram a história à raposa que fez cara pensativa e, coçando o queixo, disse: “Antes de eu poder dar-lhes o meu veredicto, eu preciso entender melhor as circunstâncias. Levem-me ao local onde se encontraram”, ela pediu.

E os três caminharam de volta até a beira do rio, nas rochas em que o pescador havia encontrado a cobra. “Como você a encontrou”, perguntou a raposa, e “como você estava?” “onde estava presa?”, “qual era a pedra?”, etc. etc. Então ela pediu que a cobra demonstrasse como ficara presa nas rochas e, com a ajuda do pescador, a cobra enfiou-se debaixo da pedra de novo.

“Agora, serpente, você está presa novamente, e o pescador terá outra chance de decidir se vai ajudá-la a sair”, disse a raposa.

E comeu o pescador ela mesma.

Da adaptação

O final é novo. Uma versão mais antiga é a indiana, “O tigre e o brâmane”, em que a raposa devora o crocodilo ingrato no final; eu incorporei um pouco disso no meu, que não estava no original.

Fonte

Este conto, encontrei-o numa coleção de contos de fadas italianos, em http://mythfolklore.blogspot.com/2014/07/italian-man-serpent-and-fox.html. A fonte é Thomas Frederick Crane, Italian Popular Tales (London: Macmillan and Company, 1885), cuja fonte, por sua vez, fora  Giuseppe Morosi, Studi sui Dialetti Greci della Terra d'Otranto: Preceduto da una raccolta di Canti, Leggende, Proverbi, e Indovinelli (Lecce: Tip. Editrice Salentina, 1870). 

Esse conto é classificado com o tipo AT0155, “A serpente ingrata devolvida ao cativeiro”, e muitos contos desse tipo estão compilados por D. L. Ashliman em Ingratitude Is the World's Reward: Folktales of Type 155.

Fonte da imaginação da capa

Enric, “File:042 Festa Major de Sants 2022 (Barcelona), carrer de Finlàndia.jpg,” Wikimedia Commons, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?title=File:042_Festa_Major_de_Sants_2022_(Barcelona),_carrer_de_Finl%C3%A0ndia.jpg&oldid=740369151