Dona Pia

Dona Pia é uma história de encontro com uma fada madrinha

Frau Holle, Senhora (ou Dona) Holle, é uma história do folclore alemão das coletadas pelos irmãos Grimm. A senhora Holle, dona Holle, é uma benfeitora mágica que rege o inverno (pelo menos!) e a heroína, que conhecemos apenas como “moça” ou “irmã bondosa”, conquista suas bençãos com sua gentileza e generosidade.

Há muitas e muitas versões dessa história em que as irmãs más, interesseiras e aproveitadoras, são punidas por uma entidade que garante benesses à irmã bondosa. Esta é, talvez, a mais conhecida delas.

Tentei traduzir e adaptar a versão dos irmãos Grimm, incorporando elementos de outros contos.

Quanto ao nome da benfeitora, eu tentei evocar algo relacionado a “sagrado”, relacionado à etimologia do nome da senhora em alemão.

Boa leitura!

“Era uma vez” é um jeito muito moderno de começar essas histórias; naquele tempo, as histórias começavam assim:

“Ouça! Estamos começando a nossa história!”

Onde hoje tem aquela mercearia, você vê? Ali, antigamente, vivia uma mulher viúva com duas filhas. À filha mais velha, que ela trouxera consigo ao se casar com o pai da mais nova, que na época dessa história já havia falecido, ela paparicava com mimos enquanto à sua enteada deixava todo o trabalho da casa. Além de cuidar da casa, a moça, então com seus dezesseis anos, também tocava o ofício de seu falecido pai, honrando compromissos de quando ele ainda vivia e mantendo o negócio familiar funcionando. Eles eram fiandeiros. Assim, boa parte do dia, quando não cuidava da casa, a moça passava fiando lã enquanto pastoreava as ovelhas naquele campo perto das colinas. Sabe onde há aquela pedra grande ao pé de um salgueiro imenso? Aquela onde é proibido brincar? Pois, ali havia um poço, mais antigo que as colinas, de onde nunca ouvi ninguém dizer que já tenho tirado água, e que hoje mantemos coberto pela segurança das crianças. Era à sombra daquele salgueiro, ao pé do poço (que naquela época ainda ficava aberto), que a moça costumava fiar.

A maior parte das crianças de hoje em dia não sabe o que é isso, fiar, nem como se fazia: a pessoa tinha que enrolar a lã num pau chamado roca, que ela então segurava debaixo de um braço, enrolando uma ponta em forma de fio e prendendo isso numa espécie de pião chamado fuso, que ela deixava rodando pendurado no fio, sempre puxando um pouco da lã da roca para o fuso, sem deixar que ela se parta, e dando impulso para o giro do fuso.

É claro que um bom fiandeiro teria mais de uma ferramenta, e as manteria sempre impecáveis; mas, enquanto seu pai fora um fiandeiro competente, ele partira repentinamente, e não tivera tempo de treinar a filha para o seu ofício. A menina já havia quebrado todos os fusos e ainda não havia aprendido a consertá-los, e na época dessa história trabalhava com o último fuso da oficina.

Você deve estar esperando que o fuso seja encantado por alguma fada vingativa, ressentida de algum mal-feito do pai ou da madrasta da menina, e que, assim que ela se espetar nele, caia num sono profundo que afetará pouco a pouco todos à sua volta até que um príncipe corajoso a livre do feitiço, certo?

Mas essa é outra história, e um conto da carochinha ainda por cima, nada que aconteça de verdade; na realidade, embora a lã seja macia e as ferramentas possam parecer brinquedos, depois de alguns minutos o movimento constante do fio queima ou às vezes até corta os dedos, e impulsionar o giro do fuso na sua ponta mais fina, além de às vezes espetar, também costuma causar cãibras, quer nos dedos, quer nas mãos todas, e para o serviço render, precisava-se encher a roca de lã até pesar bastante, e lã não é nada leve. Por isso, quem fia está sempre com os dedos feridos, espetados e queimados, e às vezes, de tão machucados, com pouca sensibilidade nas suas pontas.

E foi por isso, por cansaço e pelos dedos feridos, que um dia a moça derrubou o fuso ― o seu último fuso ― no poço.

Qualquer criança sabe que teria que contar para um adulto o que aconteceu. Mas a madrasta da menina não era uma boa pessoa e não a tratava bem. Ela sabia que, se contasse que perdera a última ferramente que as alimentava, seria castigada e que teria então que arranjar outra fonte de renda, pois a mulher e a filha não faziam muito para manter a casa. Então, a moça, com o peso de toda a responsabilidade que carregava sozinha, decidiu entrar no poço por conta própria para buscar o fuso perdido.

Ela pegou uma lâmpada, não mais que uma caixa de madeira e papel com uma vela dentro, que amarrou na cintura, e tomou emprestada de um vizinho uma longa corda. Voltou ao campo, amarrou a corda no tronco do salgueiro, fez um carinho na cabeça de seu cão, pedindo-lhe que cuidasse bem das ovelhas enquanto não voltava, e desceu no poço escuro, assim sozinha mesmo.

O poço era tão mais fundo do que se imaginava que a vela acabou antes que ela chegasse ao fundo. Ela descia na escuridão, imaginando como faria para encontrar o fuso quando chegasse ao fundo, quando, de repente, viu uma luzinha um pouco abaixo. Parecia um risco de luz, como o que fica embaixo de uma porta quando há luz do outro lado e, tateando, ela descobriu que parecia mesmo uma porta, no meio da parede do poço, embora muito pequena, muito menor do que uma porta normal numa casa seria. Ela passou a mão por todo o entorno da portinha até descobrir onde estava um puxador e, com alguma força (porque aquela porta não era aberta há muitos e muitos anos e estava já um pouco emperrada), conseguiu abri-la.

A porta abria para fora do poço e, assim que ela cedeu, você imagina a claridade que inundou aquele lugar: a moça piscou e teve que esperar alguns instantes até que pudesse reabrir os olhos que já estavam habituados à escuridão. Assim que os abriu viu que a porta dava para um campo verde, coberto de flores de todas as cores, e com um céu tão azul e claro quanto no mais limpo dia de verão. Ela entrou pela portinha, apertando-se pelo pequeno vão. A portinha abria-se numa parede coberta de heras, alta como um castelo e que se estendia à esquerda e à direita sem fim em vista.

A moça vagueou por aquele campo até encontrar um caminho, que seguiu até chegar a um forno. Havia um delicioso cheiro de pão quente no ar, e no forno a menina encontrou o maior pão que já havia visto assando, pronto. Tão pronto que, assim que a viu, a chamou:

“Oh!, moça, por favor, tire-me do forno, tire-me antes que eu me queime e vire cinzas! Eu já estou mais que pronto!”

Então ela pegou uma grande espátula que ficava pendurada ao lado do forno e o tirou rapidamente, e pegou um lenço grande em seu avental e abanou o pão com ele. E o pão a agradeceu e pediu que ela provasse um pedaço da casca ― mas a moça prestava atenção às histórias e sabia que comer naquele lugar seria tão insensato quanto causar ofensa a quem quer fosse. Ela agradeceu e explicou estar sem fome com educação e respeito, deixando o pão satisfeito apesar de contrariado. Despediu-se dela, ainda agradecido, que seguiu caminhando pela trilha que encontrara.

Então ela chegou a um lindo pomar e ali havia uma macieira carregada das mais belas maçãs já vistas, vermelhas, brilhantes e redondas. Enquanto ela passava admirando aquelas maçãs, ouviu a árvore chamando:

“Moça, olá, moça! Por favor, você poderia me ajudar? Sacuda meus galhos, por favor, pois as maçãs estão maduras e já pesam bastante!”

Então a moça sacudiu a macieira com tanta força quanto pôde, e as maçãs caíram.

“Ah! Que alívio, minha filha, muito obrigada!”, a macieira agradecia, enquanto a moça empilhava as belas maçãs aos seus pés.

Seguindo em seu caminho, a moça chegou a um pequeno casebre de madeira, à frente do qual se sentava uma mulher tão velha que sua pele parecia feita da mesma madeira da casa. Ela estava sentada numa cadeira, com os olhos baixos, cabelos finos e brancos muito escassos e ralos caindo pelos ombos cobertos com uma capa muito puída de um tecido que um dia fora colorido, mas que hoje parecia de alguns poucos tons de marrom. Ela parecia imóvel a não ser pelo estranhamente ágil movimento das mãos, que fiavam a lã mais branca que a moça já vira num fuso que lhe parecia muito familiar.

Assim que a moça a viu, a senhora levantou a cabeça, olhando diretamente para ela, e abriu um sorriso um pouco assustador, um sorriso com dentes em maior número e tamanho do que se poderia esperar não só pela idade da mulher, mas de qualquer pessoa. Embora o sorriso fosse pacífico e acolhedor, os dentes eram tão grandes e numerosos que assustaram a moça.

“Nada tema, filhinha, não se assuste! Não trago perigo a si ou à sua espécie, apesar de minha aparência”, disse a senhora, e riu um riso agradável (mas ainda mais assustador) com seus grandes dentes. “Fique comigo e me ajude na casa! Se você trabalhar bem, vou recompensá-la!”

Dona Pia, como ela disse se chamar, falava com tamanha doçura que a moça aceitou ajudá-la. Ela começou pela lã, confirmando a suspeita de que a velha tinha o fuso que perdera no poço. Fiou toda aquela roca da lã mais branca que já vira, e depois lavou as roupas, lavou e organizou a louça e limpou toda a casa da senhora. Dona Pia pediu-lhe por fim que arrumasse sua cama, mas lhe pediu que fosse cuidadosa: “Quando arrumar a minha cama, quero que a bata até que as penas voem!”. E assim a moça fez: bateu a cama com tanta força que as penas voaram no ar, flutuando como flocos de neve.

Dona Pia ficou satisfeita e a acolheu em sua casa por algum tempo. A moça ficou com ela por algum tempo, cuidando de sua casa, de seus animais, fiando sua lã e batendo sua cama e suas roupas. O trabalho era o mesmo que fazia na casa de sua madrasta, mas o tratamento que recebia da bondosa velhinha não podia ser mais diferente do que o que lhe dava a viúva de seu pai. A velhota sorria e a agradecia por cada tarefa realizada e demonstrava grande alegria em tê-la por perto. Mesmo assim, a moça às vezes sentia-se triste e descobrir sentir falta de sua casa, de seu cão e suas ovelhas, até mesmo da madrasta e da irmã más. Então, ela foi à dona Pia e lhe pediu:

“Eu sei que estou muito melhor aqui do que já estive em minha vida, mas ainda assim sinto falta de minha casa, apesar de toda a vossa bondade para comigo. Por favor, vovó (pois ela chamava dona Pia de vovó), permita-me voltar para minha casa!”

“Filhinha, netinha querida, você me tratou tão bem, mas eu compreendo e recebo com alegria seu desejo de voltar para casa! Venha comigo, vou mostrar-lhe o caminho de volta para o mundo eu mesma!”

Então dona Pia tomou a sua mão e abriu a porta do pequeno armário que ficava embaixo da escada, onde tantas vezes a moça havia entrado para pegar ou guardar instrumentos e ferramentas. Desta vez, porém, quando a vovó a abriu, aquela porta levava a um quarto maior do que poderia haver naquele pequeno casebre, um quarto mais limpo e iluminado do que qualquer outro cômodo na casa, e ela guiou a moça até um guarda-roupa de onde tirou um chale de um tecido tão leve quanto as penas do colchão e tão colorido quanto um campo florido, com o qual a presenteou. Ao esticá-lo para cobrir os ombros da moça com ele, de dentro do chale caíram, leves como plumas, flocos de ouro puro que cobriram a moça até os ombros. Doca Pia também a presenteou com o fuso que perdera no poço. As duas se abraçaram longamente, e se despediram chorando. Então, dona Pia deu-lhe uma vela para a sua lâmpada e abriu a porta do quarto, que agora era uma porta pequena que dava para uma escuridão. À frente da porta, uma corda balançava. A moça a testou e viu que a corda ainda estava presa firmemente, deu mais um beijo na vovó Pia e escalou a corda dentro do poço de volta para casa. A vovó ficou ali na porta observando-a partir até que ela não fosse mais que um pontinho preto no clarão da boca do poço, lá no alto.

Ao ver sua dona sair de volta do poço, o cão não conseguiu segurar um latido de felicidade, que assustou algumas das ovelhas que, de outra maneira, permaneciam imperturbáveis. Um leve balido se ouviu, quase um muxoxo, e as ovelhas voltaram a pastar. O cão pulava à sua volta, abanando o rabo e a moça percebeu que, embora tivesse passado semanas na casa da vovó Pia, não passara nem uma hora por aqui. Ela juntou as ovelhas e seguiu de volta para casa mais cedo, chegando coberta de ouro como saíra da casa da bondosa velhinha.

Ela contou a história à madrasta e à irmã. Esta, decidiu-se a imitá-la, cobiçando destino semelhante ao seu: escondida, pegou o fuso e, para parecer que o trabalhara, enfiou as mãos num arbusto espinhento. Jogou o fuso ensanguentado no poço e desceu por uma corda, encontrando a portinha e chegando aos lindos campos verdes do lado de lá. Seguindo a trilha, passou pelo forno, ouvindo o pão chamar:

“Por favor, moça, tire-me do forno, tire-me antes que eu me queime e vire cinzas! Eu já estou mais que pronto!”

Mas ela não queria sujar as mãos de fuligem no forno e respondeu ao pão que aquilo deveria ser uma piada, seguinte a frente em seu caminho.

E então ela também chegou à macieira que lhe pediu:

“Por favor, moça, sacuda meus galhos, por favor, pois as maçãs estão maduras e já pesam bastante!”

E ela olhou para cima e afastou-se da árvore, temendo que alguma das maçãs maduras lhe caísse na cabeça, seguindo seu caminho sem prestar nenhuma outra atenção à árvore.

Por fim, ela chegou ao casebre da vovó dona Pia, cujos dentes, porque ela já os sabia enormes pela história da irmã, não a assustaram. A vovó lhe fez o mesmo pedido e ela aceitou prontamente ser sua criada. No primeiro dia, ela também, como sua irmã antes, trabalhou a roca e o fuso, lavou as roupas e as louças e limpou a casa de dona Pia, batendo sua cama até que as penas voassem ― pois ela esperava voltar coberta de ouro como sua irmã. Mas aquele dia acabou sem que isso acontecesse e do dia seguinte em diante ela não se aplicou tanto, jamais sacudindo a cama, o travesseiro ou as cobertas até que as penas voassem de novo. Assim, sua patroa, dona Pia, cansou-se de seu desleixo e a dispensou, o que a fez muito feliz. “Agora, certamente serei coberta de ouro!” ela pensava, animando-se para partir.

A vovó Pia abriu-lhe a mesma porta que abrira para sua irmã antes, levando-a ao mesmo quarto. Deu-lhe um chale cinzento, empoeirado, de um pano espesso. A própria moça o agitou para cobrir com ele os ombros, lembrando-se do banho de ouro puro que o chale presenteado à sua irmã rendera. Ao esticar o chale em seus ombros, no entanto, dele caiu um banho de piche grudento, que cobriu sua pele e suas roupas.

Dona Pia disse-lhe: “Essa é a recompensa pelos seus serviços”, e a empurrou para fora do portinha, fechando a porta a seguir. O piche ficou grudado nela por toda a sua vida.

A irmã bondosa dividiu seu ouro com a madrasta e a irmã e comprou-lhes a parte da casa e das ovelhas. Com o dinheiro e a vergonha, as mulheres más partiram e nunca mais se soube delas. A moça comprou muitos fusos e permaneceu na cidade até morrer. Ela casou-se e teve muitos filhos aos quais contou sua história, que contaram aos seus filhos e estes aos seus, até hoje, quando eu conto essa história a você. E é por isso que, quando neva, dizemos que a dona Pia está arrumando a cama.

Fonte

Jacob and Wilhelm Grimm, “Frau Holle,” Kinder und Hausmärchen gesammelt durch die Brüder Grimm, vol. 1, 7th edition (Göttingen: Verlag der Dieterichschen Buchhandlung, 1857), no. 24, pp. 133-36. Edição digital de D. L. Ashliman em: https://www.pitt.edu/~dash/grimm024.html

Crédito da imagem de capa

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