Pintosmalto

Pintosmalto, meio A Bela e a Fera e meio Pigmaleão, é uma problemática história de amor

Esta história está no Pentamerão, de 1634, e é uma história do tipo da Bela e Fera, em que a Bela ativamente desencanta seu amado. Aqui, porém, ele não é fera, mas uma espécie de bolinho, o que é muito esquisito. A Bela, aqui, é meio feiticeira e cria o seu pretendente dos sonhos como uma receita de bolo — só para vê-lo sequestrado e encantado pela rainha má de outro reino.

Contos de fadas são repletos de exemplos problemáticos de relacionamento, e precisamos aprender a usá-los como contos de advertência e não como doutrinamento de conformação normativa. Esta, em particular, que evoca um pouco da lenda de Pigmaleão — o escultor misógino e perfeccionista que se apaixona pela sua própria escultura, que adquire vida como uma benção da deusa do amor — achei particularmente problemática ao ponto de eu fazer um epílogo: desconsidere-o à vontade.

Boa leitura!

Na minha infância as histórias começavam assim:

Senta que lá vem a história!

Lá onde hoje é a Vila Nova, antigamente ficava a sede de uma fazenda que ia da rodovia até o rio. O dono dessa fazenda tinha uma filha que ele queria casar, mas a moça, que se chamava Betta, nunca aceitava os pretendentes que apareciam em busca de sua mão — além das terras, cabeças de gado e muitas outras riquezas de seu pai.

Num belo dia, o fazendeiro se preparava para viajar até uma feira, onde havia de vender parte de sua produção e comprar suprimentos para o inverno. Então, ele perguntou a Betta o que ela gostaria que ele lhe trouxesse de presente. Aposto que você pensa que ela pediu uma singela rosa — mas essa era a Betta e não a Bela, e você está pensando na história da Bela e a Fera. Pois Betta respondeu a seu pai com uma verdadeira lista de compras. A moça queria:

O pai, que já era habituado aos gostos excêntricos da moça, nem estranhou tanto aquela estranha lista de desejos e dali uma semana trouxe todos os ingredientes desejados.

Betta festejou a chegada de sua encomenda, beijou as bochechas do pai agradecendo-lhe, trancou-se no seu quarto e começou a trabalhar. Eu gosto de imaginá-la toda enfarinhada, sovando com as mãos uma massa formidável; gosto de pensar nela cantando enquanto lava as louças, esperando a massa crescer; de visualizá-la pesando meticulosamente ingredientes, e calculando as proporções corretas, depois temperando tudo com carinho. Na minha imaginação ela pinga na palma da mão um pouco do que quer que esteja preparando naquele caldeirão, prova, e sorri.

Mas a verdade é que ninguém que não seja iniciado nas artes que a moça conhecia sabe que receita ela fez. Sabe-se apenas, porque ela mesma disse, que o que inspirou a sua obra foi uma história que uma vez ouvira, de um antigo rei do Chipre que trouxera uma estátua à vida, e que o que quer que fosse aquela receita, ela a modelou na forma de um belo jovem, e que então fez uma prece à deusa do Amor para que o seu bolinho — que era bem mais suave e macio que uma estátua de mármore — ganhasse vida.

E por algum motivo que não é para nosso entendimento, Afrodite, do alto de sua compaixão, permitiu que aquela maravilha acontecesse como queria a jovem. E aquele bolinho tão bem amassado, com ingredientes tão especiais e tão perfumado de especiarias, começou a se mexer. E de repente onde havia uma parte de bolo surgiu um braço e outro, e pernas, e abriu-se um olho e outro, e lábios, e ergueu a cabeça um rapagão assim tão esbelto, já vestido de príncipe, elegante, fino, vistoso, corado como se tivesse sido assado com gema de ovo nas bochechas.

Quando Betta apareceu no salão da mansão, não se sabia o que brilhava mais: se os olhos da moça ou o sorriso do rapaz. A moça levava-o pelas mãos e quando se aproximou do pai, fez uma mesura e disse-lhe:

— Querido pai, você sempre quis me ver casada, e sei que nenhum dos pretendentes me satisfez; pois, a fim de realizar o seu desejo, escolhi um pretendente segundo o meu próprio coração.

Quando o pai viu o moço, tão vistoso, viril, elegante, e viu nos olhos da filha a satisfação e encantamento da moça, concordou imediatamente com o enlace. E mandou chamar o padre e fez anunciar por toda a região e organizou-se uma festa de noivado ainda naquele dia, que duraria dias a fio não fosse o terrível incidente que ocorreu naquela noite.

A festa estava boa e havia gente de todas as cidades da região. E dentre os convidados havia uma rainha desconhecida, a qual, ao pousar os olhos em Pintosmalto (pois fora esse o nome que Betta dera ao rapaz feito de bolinho), apaixonou-se perdidamente. Ninguém sabe até hoje quem era essa rainha, só que não era boa pessoa. Pintosmalto, que mal havia saído do forno, inocente como um garotinho, acabou deixando-se levar pela estranha rainha, que o colocou dentro de sua carruagem e levou-o para seu país, onde, porque era uma tirana, as leis todas a favoreciam, e assim o rapaz viu-se sem saber bem como ou porquê, casado com a rainha.

Betta circulava pela festa recebendo cumprimentos dos muitos convidados enquanto a rainha sequestrava seu noivo. Ela circulou pelo salão, depois pelos jardins, depois até o portão, procurando o seu noivo. Uma forte dor no seu peito serviu de sinal para que ela imaginasse que seu pior temor ocorrera: que Pintosmalto, devido à sua extraordinária beleza, fora levado dela. Ela mandou anunciar recompensas e mandou enviados para todas as terras à busca do jovem, mas não teve qualquer notícia de seu paradeiro. Então ela pegou uma pistola e uma espada, mandou selar seu cavalo, e partiu em busca de seu noivo perfeito.

Pouco se sabe de suas jornadas nessa busca. Hoje, há notícias de que ela advogara em defesa de um grupo de agricultores que reivindicavam a posse coletiva de uma gleba lá pelos lados de Fundão; que fora avistada atuando como corsária na costa da Argentina; que capturou e domou um urso pelos lados de Matão — e outras histórias sem sentido.

Mas depois de alguns meses de sua partida, Betta encontrava-se maltrapilha num país desconhecido. Caminhava a pé há muitos dias, com fome e sede, quando foi acolhida por uma velhinha muito pobre naquele lugar. Depois de comer, tocada pela generosidade da mulher, Betta deixou rolar todas as lágrimas que guardara em todos aqueles meses e aventuras, e contou à mulher tudo o que lhe ocorrera.

A mulher era uma poderosa sábia e, compadecida da aflição de Betta, ensinou-lhe três ditados de poder: o primeiro era “trove varlofe, a casa chove!”, o segundo era “Anoca tranoca, a fonte toca”, e o terceiro era “Scatila matila, o Sol brilha!”, e ensinou-a a falar essas palavras quando tivesse problemas.

Betta achou aquilo muito curioso, mas lembrou-se de ter feito um noivo perfeito de massa de bolo e pensou consigo mesma: “Quem assopra na nossa boca não nos quer mortos e a planta que finca raizes não murcha. Tudo tem o seu uso: quem saberá que boa sorte essas estranhas palavras não podem conter?” Então, agradeceu à boa velhinha, e, descansada, alimentada e revigorada, seguiu em sua jornada.

Depois de muito caminhar, ela chegou a uma linda cidade chamada Monte Redondo, a cujo palácio ela prontamente se dirigiu, implorando por um abrigo no estábulo. Compadecida daquela jovem tão bela em tamanho apuro, a cozinheira arrumou-lhe um quartinho sob a escada. E foi ali que ela viu, ainda naquele dia, passar Pintosmalto.

Ela ficou tão feliz por finalmente reencontrá-lo, e ao mesmo tempo muito furiosa, pois entendeu o que havia acontecido. Decidiu, então, testar as palavras que aprendera com a velha sábia e disse: “Trove varlofe, a casa chove!”. E com um clarão e o ruído de metais, apareceu bem na sua frente uma carruagenzinha toda de ouro, cravejada de pedras preciosas, que andava sozinha pelo chão.

Aquilo foi um espanto e logo levaram-na para a rainha, que quis comprar-lhe a carruagem de ouro. Betta fincou pé e disse que não trocaria a carruagem por nada, a não ser que a rainha permitisse que ela passasse uma noite à porta do quarto de Pintosmalto.

A rainha achou aquilo de uma tolice tão grande! Aquela menina em farrapos abrindo mão de uma riqueza tão valiosa em troca de uma bobagem. Assim, a rainha prontamente consentiu — e, desconfiada das intenções de Betta, deu uma poção do sono para Pintosmalto para, por assim dizer, pagar Betta com uma moeda falsa.

Pintosmalto, embriagado pela poção, dormiu como uma pedra e por isso não ouviu a pobre Betta contando, ajoelhada à sua porta, tudo o que passara para chegar até ali e o quanto sofria pela perda de seu amado, até o Sol surgir. Então, a rainha disse-lhe que se desse por satisfeita. Betta disse para si mesma: “Que você possa viver tão satisfeita todos os dias de sua vida” e, descontente, decidiu usar o segundo encantamento que aprendera.

— Anoca tranoca, a fonte toca! — e eis que se produziu do ar, como antes a carruagem, uma gaiola com um rouxinol que voava e cantava dentro dela, tudo feito de ouro, apesar da voz do pássaro que parecia de veludo. Aquela maravilha era ainda mais impressionante que a primeira, e atraiu ainda mais interesse da rainha. Houve a mesma negociação de antes e mais uma vez a rainha garantiu a Betta o direito de velar o sono de Pintosmalto; novamente, a malvada enfeitiçou o sono do rapaz e novamente Betta passou a noite lamentando a sua perda, com palavras tão tristes que fariam chorar uma pederneira; novamente, pela manhã, a rainha mandou embora Betta, com sua dor e lamentos somados à raiva pelo truque.

Naquele dia, Pintosmalto passeava pelo pomar quando ouviu uma conversa entre dois criados: um deles contava do triste lamento noturno de uma pobre mendiga que estava hospedada sob a escada, e que ele ouvira duas noites a seguir, e recontou ao companheiro tudo o que ouvira do choro de Betta, e Pintosmalto ouviu tudo.

Enquanto isso, furiosa com a tramóia da rainha, Betta murmurou consigo o terceiro feitiço e, “Scatila matila, o Sol brilha!” depois, e o chão ficou coberto de fazendas e rolos de tecidos finos, sedas, echarpes, tudo o que se imagina de luxo, e taças e canecos e pratos de puro ouro, tudo coberto de pedras preciosas e ricamente adornado. E a rainha, mais uma vez, perguntou-lhe o preço por aquelas riquezas, e novamente Betta exigiu velar o sono de Pintosmalto.

Naquela noite, entretanto, Pintosmalto, desconfiado, esperou que a rainha se virasse e cuspiu o sonífero. Betta começou seu lamento como antes à porta de seu quarto, narrando inclusive como abrira mão de seus tesouros para lembrá-lo de sua paixão, e como aquela era a sua última chance de salvá-lo dos encantos da rainha.

Pintosmalto lembrou-se de tudo e correu para seus braços. Então, entrou sorrateiro no quarto da rainha e levou consigo todas as maravilhas e riquezas que ela havia tomado de Betta, como compensação por seu próprio sofrimento. Então, acompanhado de sua noiva, voltou à fazenda de seu pai, onde encontraram-no bem e saudável. E ele pulou e dançou como um menino de alegria de reeencontrar a filha tão querida, e naquele mesmo dia realizou-se o casamento.

E a rainha, ao acordar e não encontrar nem noivo, nem mendiga, nem jóias, ouro, tecidos, maravilhas, enfurecida, arrancou os cabelos, rasgou as próprias roupas e gritou de raiva — mas lembrou-se do ditado:

Ladrão que rouba ladrão, cem anos de perdão!

Epílogo

Gosto de pensar que no final dessa história viria um “e depois de alguns meses, eles se separaram, porque relacionamentos não são feitos assim, como uma receita de bolo, mas mais como um pão que você amassa e que cresce com o tempo, com os dois amantes crescendo um ao lado do outro.” Mas é só um conto de fadas.

Fonte

Gianbatista Basile, Pentamerone, or The Story of Stories. Trad. John Edward Taylor. London: David Bogue, 1850 https://en.wikisource.org/wiki/The_Pentamerone,_or_The_Story_of_Stories/Pintosmalto.

Crédito da imagem de capa

Wikimedia Commons contributors, "File:Stories from the Pentamerone-0372.jpg," Wikimedia Commons, the free media repository, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?title=File:Stories_from_the_Pentamerone-0372.jpg&oldid=670755583 (accessed September 10, 2022).