Carlinha Caturra

Um conto de astúcia e bravura com uma heroína formidável

Maol a Chliobain é uma heroína escocesa muito astuta: além de encarar, enganar e vencer um gigante não só uma, mas várias vezes, ela também conseguiu se colocar num universo dominado por homens: o de protagonistas de contos de fadas. Uma moça muito valente e teimosa, Maol a Chliobain — que chamei de Carlinha Caturra — encara os desafios como se nunca houvesse outro resultado possível senão o que ela deseja, e responde, sempre, que vai aonde quiser quando precisar.

Boa leitura!

Era uma vez uma viúva muito pobre que tinha três filhas. Um dia, as meninas se juntaram e decidiram sair em busca de riqueza. A mãe, então, assou um bolo de fubá e dividiu-o em quatro pedaços, oferecendo-os às filhas por ordem de idade. 

Então ela disse à mais velha primeiro: “O que você prefere? O pedaço menor e a minha benção ou o pedaço maior e a minha maldição?” E a filha mais velha respondeu que queria o maior e a maldição, e assim ela fez. Perguntou à segunda: “O que você prefere? O pedaço menor e a minha benção ou o pedaço maior e a minha maldição?” Também a segunda respondeu que queria o bolo maior e assim ela fez. Por fim, fez a mesma pergunta à caçula, que se chamava Carlinha Caturra, porque era teimosa que só ela: “O que você prefere? O pedaço menor e a minha benção ou o pedaço maior e a minha maldição?” — e Carlinha disse que preferia o pedaço menor e a bênção da mãe — que, satisfeita, deu-lhe os dois pedaços que restavam e abençoou a sua partida com a melhor sorte que os deuses pudessem lhe dar na forma de um talismã que parecia uma pedra com um furo.

As meninas partiram, mas as mais velhas não queriam a Caturra consigo. Então, se apressaram à frente da irmã e se esconderam atrás de uma árvore e, quando Carlinha passou, amarraram-na na árvore, seguindo em frente sem a caçula Carlinha Caturra.

A bênção da mãe, porém, salvou a Carlinha que sacudiu um pouco o corpo até arrancar a árvore do chão e, apertando o passo, seguiu no caminho, em busca das irmãs, com a árvore amarrada nas costas.

As irmãs olharam para trás e o que viram? A cabeçudinha da Caturra com uma árvore andando apressada em sua direção. Então, se esconderam atrás de uma pedra e, quando passou a Carlinha, amarraram-na na pedra. E, novamente, a Caturra conseguiu se soltar, e apertou o passo para alcançar as irmãs, desta vez com uma árvore e uma pedra enorme equilibradas no seu cabeção.

Então as irmãs perceberam que a teimosia da Caturra era demais para elas e que a Carlinha não seria detida nem por pedra, nem por árvore, nem por ninguém. Desamarraram-na e deixaram-na vir com elas.

Já era tardezinha e escurecia depressa. Estava frio e as três sentiam fome: a última coisa que tinham comido era o bolo pela manhã. Então, avistaram uma luzinha no meio do bosque e foram em sua direção. Chegaram a um casebre que era do tamanho de uma pequena colina. Chamaram e foram atendidas por uma ogra enorme e horrenda, e pediram-lhe pousada para a noite. A ogra concordou, mas disse-lhes que se apressassem para deitarem, pois o ogro não demoraria a chegar e tinha um apetite terrível por gente humana.

Então, as mocinhas se deitaram na cama das filhas dos ogros, que eram do mesmo tamanho delas, com cabelos longos iguais: pareciam seis irmãs, três mais ou  menos bonitas e três horrendas, mas mais ou menos do mesmo tamanho. A única diferença era que as ogrinhas tinham uma fina correntinha de prata, enquanto as garotas vestiam colares de palha trançada. 

Não demorou muito e alguém abriu a porta como se fosse um exército atacando um castelo de pedra! 

“Fi Fo Fum, Fana, sinto cheiro de carne humana!”, ouviram a voz do ogro que parecia o som de um deslizamento de terra.

“Onde estão, mulher? Onde estão essas humanas?”

“Você não pode comê-las, Joãozão-ogrão!”, respondeu-lhe a companheira: “Pois dei-lhes passagem e hospedagem para a noite, e a minha palavra é justa!”

“Está bem, está bem”, concordou o monstralhão.

No meio da noite, ele acordou com sede, chamou o seu criado, que era um ogro careca com pele de sapo, e disse-lhe: “Traga-me um tanto assim de água!”

“Meu senhor monstruoso, com as visitas, acabou a nossa água: não se encontra uma gota de que beber na casa!”

E o ogro que era ruim do cabelo das suas orelhas até as garras dos seus dedinhos dos pés, mandou o criado pegar uma das visitas, matá-la e drenar-lhe o sangue para ele beber!

O criado perguntou-lhe como diferenciar as ogrinhas das visitas no escuro e o ogro disse-lhe que pegasse quem não tivesse os colares de prata.

Acontece que a Carlinha não tinha pregado o olho desde que ouvira aquele terremoto que era o ogrão chegar, e ouviu tudo o que ele disse. Então, cuidadosamente, trocou os colares, seu e das irmãs, com os das ogras, e o criado careca com pele de sapo veio e matou uma das filhas do ogro e drenou o seu sangue e deu-o de beber ao monstro. E o ogro continuou com sede e pediu que o criado matasse mais uma e outra, até acreditar ter acabado as humanas de cujo sangue beber, e bebeu todo o sangue das monstrinhas no lugar.

Carlinha Caturra, então, acordou as irmãs e convidou-as a fugir. 

Mas, na hora de sair, ela pegou uma toalha que era feita de ouro, e a toalha gritou para o ogro que estava sendo roubada. O ogro acordou e saltou, correndo no encalço das meninas.

As irmãs correram o mais que podiam até chegar a um rio muito violento. Então, Carlinha arrancou um fio de cabelo de cada uma, amarrou um no outro, e fez uma ponte de fios de cabelo até o outro lado. O gigante não podia nem ver nem usar a ponte de cabelos da Carlinha Caturra, e gritou-lhe da outra margem:

“Você está aí do outro lado, Carlinha Caturra.”

“Estou, embora isso seja difícil para você.”

“E você tramou para que eu matasse as minha filhas.”

“Tramei, embora isso seja difícil para você.”

“E quando você estará de volta, Carlinha Caturra?”

“Eu vou para onde quiser, quando desejar! Volto quando tiver assuntos a resolver por aqui.”

E as meninas seguiram o seu caminho, do outro lado da margem do rio, até chegar a uma enorme fazenda, com uma mansão enorme, onde foram acolhidas pelo fazendeiro mais rico que já tinham visto. Carlinha Caturra contou toda a história do que elas haviam passado no casebre do gigante do outro lado do rio, e o fazendeiro ouviu satisfeito. Então, ele disse:

“Você tem irmãs, Carlinha, e eu, filhos muito ricos. Pois eu casarei o meu filho mais velho com a sua irmã se você me trouxer o fino pente de ouro e o pente grosseiro de prata do ogro!”

“Não vai te custar nada além disso”, respondeu-lhe a Caturra, e partiu de volta para a casa do gigante. No caminho, ela rolou na lama e lambuzou seu cabelo de lodo, para disfarçar o cheiro de gente. Entrou no casebre sem deixar que a ogra a visse e se escondeu debaixo da cama do ogro.

À noite, quando o casal de ogros e o criado careca com pele de sapo dormiam, Carlinha Caturra saiu do esconderijo, escalou o armário e apanhou os pentes fino de ouro e grosseiro de prata do ogro, botou-os num saco e saiu correndo em direção ao rio.

O ogro ouviu o barulho e a perseguiu; ela cruzou a ponte de cabelos e ele, não. Então ele disse a ela:

“Você está aí do outro lado, Carlinha Caturra.”

“Estou, embora isso seja difícil para você.”

“E você tramou para que eu matasse as minha filhas.”

“Tramei, embora isso seja difícil para você.”

“Você roubou os meus pentes valiosos.”

“Roubei, embora isso seja difícil para você.”

“E quando você estará de volta, Carlinha Caturra?”

Eu vou para onde quiser, quando desejar! Volto quando tiver assuntos a resolver por aqui.”

Então, ela voltou à fazenda do homem rico, entregou-lhe os enormes pentes valiosos, e o fazendeiro ofereceu a mão de seu filho mais velho à irmã mais velha da Carlinha. Os dois se casaram ali na fazenda mesmo, numa festa enorme, que durou três dias e noites. E no final dos três dias, mais uma vez o fazendeiro chamou a Carlinha e disse a ela:

“Você tem outra irmã, Carlinha, e eu mais filhos muito ricos. Pois eu casarei o meu filho do meio com a sua irmã se você me trouxer a espada de luz que ouvi dizer que o ogro possui!”

“Não vai te custar nada além disso”, respondeu-lhe a Caturra, e partiu de novo para a casa do gigante. Lá chegando, ela se escondeu em uma árvore que ficava em cima do poço, e esperou até anoitecer. À noite, o criado careca com pele de sapo saiu, com a espada de luz para iluminar seu caminho, e abaixou-se à beira do poço para pegar água.

Carlinha saltou da árvore e empurrou o ogro careca com pele de sapo pra dentro do poço, e ele morreu afogado. Ela, então, pegou a espada de luz e correu o mais que pode, pois, com o grito do criado, o ogro saíra correndo atrás dela. E ela correu e correu, o caminho iluminado pela espada de luz que roubara, até atravessar o rio com a sua ponte de cabelos. E o ogro gritou, do outro lado do rio:

“Você está aí do outro lado, Carlinha Caturra.”

“Estou, embora isso seja difícil para você.”

“E você tramou para que eu matasse as minha filhas.”

“Tramei, embora isso seja difícil para você.”

“Você roubou os meus pentes valiosos.”

“Roubei, embora isso seja difícil para você.”

“Você matou o meu criado, Carlinha Caturra, e roubou a minha espada de luz.”

“Matei e roubei, embora isso seja difícil para você.”

“E quando você estará de volta, Carlinha Caturra?”

“Eu vou para onde quiser, quando desejar! Volto quando tiver assuntos a resolver por aqui.”

Então, ela voltou à fazenda do homem rico, entregou-lhe a espada mágica de luz, e a sua irmã do meio casou-se com o filho do meio do homem, e todos festejaram muito. Por fim, depois de cinco dias de festa, o fazendeiro aproximou-se de Carlinha e disse:

“Carlinha Caturra, você é mesmo astuta! Eu ainda tenho um filho, caso você se interesse em se casar; traga-me o bode do ogro, e darei a mão do rapaz para você!”

“Não vai te custar mais nada além disso”, respondeu-lhe a Caturra, e partiu de novo para a casa do monstro. Lá chegando, pegou o bode, e saía de fininho quando o bode berrou: “Mé!” — e o ogro apareceu de repente, pegando a Carlinha com uma mão só.

“Hahahahaha!”, riu-se o ogro, “Enfim a sua sorte acabou, Carlinha Caturra! Você é mesmo muito astuta, mas agora eu te peguei! O que você faria comigo, se estivesse em meu lugar e eu no seu?”

“Eu faria você se empanturrar de mingau e te amarraria dentro de um saco; depois, buscaria o maior porrete que eu pudesse encontrar e daria tanta pancada no saco até você estar todo quebrado feito um feixe de gravetos!”, respondeu-lhe Carlinha Caturra, orgulhosa.

Então o ogro mandou fazer mingau e deu pra Carlinha comer. Carlinha comeu quanto pôde e lambuzou a sua cara toda de mingau. Depois, o ogro amarrou-a num saco, que ele pendurou, saindo em busca do maior porrete que pudesse encontrar.

Quando ele saiu, a Carlinha começou a dizer:

“Ah, que coisa linda! Que coisa maravilhosa!”

E a ogra ficou curiosa.

“Que coisa extraordinária! Se você pudesse ver o que eu vejo!”

“O que é, o que é?” perguntou-lhe a ogra, intrigada.

“Ah, não dá para descrever! Você teria que ver! É tão incrível!”

Então a ogra abriu o saco para espiar dentro e ver o que a Carlinha estava vendo. E a Caturra pulou pra fora do saco e, com uma cabeçada, jogou a ogra para dentro dele, amarrando bem forte a boca do saco atrás dela.

O ogro voltou com um porrete do tamanho de um poste e começou a surrar o saco com a ogra dentro.

“Pare! Pare! Sou eu mesma quem está aqui!”, gritou-lhe a ogra.

“Eu sei que é você mesma!”, respondeu o ogro, e surrou o saco até que a ogra estivesse morta como um feixe de lenha.

Então, Carlinha saiu do seu esconderijo,  pegou o bode e saiu correndo em direção ao rio.

O ogro entendeu tudo e saiu ainda mais furioso atrás dela.

Novamente, ela atravessou a ponte de cabelo e novamente o ogro gritou:

“Você está aí do outro lado, Carlinha Caturra.”

“Estou, embora isso seja difícil para você.”

“E você tramou para que eu matasse as minha filhas.”

“Tramei, embora isso seja difícil para você.”

“Você roubou os meus pentes valiosos.”

“Roubei, embora isso seja difícil para você.”

“Você matou o meu criado, Carlinha Caturra, e roubou a minha espada de luz.”

“Matei e roubei, embora isso seja difícil para você.”

“Você amarrou a minha mulher dentro do saco, Carlinha.”

“Amarrei, embora isso seja difícil para você.”

“E você também roubou o meu bode, Caturra.”

“Roubei, embora isso seja difícil para você.”

“E quando você estará de volta, Carlinha Caturra?”

“Eu vou para onde quiser, quando desejar! Volto quando tiver assuntos a resolver por aqui.”

“Se você fosse eu”, o ogro tentou de novo o seu plano desastrado, “Se você fosse eu e eu fosse você, o que você faria para me pegar?”

“Eu saltaria no rio e beberia toda a água para poder te alcançar!”, respondeu-lhe Carlinha.

Então, o ogro saltou no rio e engoliu toda a água que pôde até estourar.

Carlinha Caturra, rindo, seguiu o seu caminho. Uns dizem que aquele bode cagava bolinhas de ouro, e que Carlinha ficou tão rica que comprou a fazenda do sogro das suas irmãs e casou-o com a mãe viúva, e arrumou alguém para o rapaz, porque ela mesma não queria se casar; outros dizem que ela viveu muitas outras aventuras, sempre muito astuta e valente, enganando monstros arrogantes e pessoas más — mas minha vó só me contou até aí, e riu-se tanto que acabou a história antes do final.

Fontes

Essa é a história de Maol a Chliobain, uma história escocesa, registrada por ingleses, que tem muitas outras versões — na verdade, ela é quase familiar demais, se pensássemos nalgum “João” como protagonista. No registro inglês, essa história também aparece como “Molly Whuppie”.

Meu primeiro encontro com essa história foi a adaptação de Angela Carter, em 103 Contos de Fadas (Companhia das Letras, 2007). 

A fonte que usei foi J. F. Campbell, “Maol a Chliobain”, In: Popular Tales of the West Highlands. Vol. 1 (London: A. Gardner, 1890), disponível em: https://www.sacred-texts.com/neu/celt/pt1/pt121.htm. Consultei a “Molly Whuppie” em Joseph Jacobs, English Fairy Tales (London: David Nutt, 1890), disponível em: https://sites.pitt.edu/~dash/type0327.html#mollywhuppie

Não sei bem porquê, mas quis traduzir esse nome da Molly: eu queria algo que carregasse a sua teimosia, por isso cheguei no Caturra. Daí para Carlinha, foi um pulo. Assim criei o novo nome da nossa heroína.

Crédito da imagem

Não consegui encontrar uma imagem com uma heroína, então pedi para uma inteligência artificial, o bing, criar uma.