O lobisomem

“O lobisomem” é uma história com uma heroína tenaz

Nesse conto de fadas sueco, um belo príncipe é transformado em um lobo e a sua noiva consegue salvá-lo da maldição com o auxílio de ajudantes misteriosos num bosque encantado.

A adaptação atualiza cenários e classes sociais para um contexto mais próximo — a infância do meu avô. Também abri mão daquela lenga-lenga da rainha-que-morre-e-o-rei-viúvo-tadinho-que-acaba-se-casando-com-uma-mulher-má, porque acho que já deu né.

Boa leitura!

Um dia, quando eu era criança, ouvimos um uivo esquisito e meu avô ficou todo sério — ele disse que parecia um lobisomem! Eu ri muito dele, porque sabia que lobisomem não existe; mas ele me disse que existia sim, e que ele tinha visto com os próprios olhos! E então, ele me contou essa história:

Lá na minha época, quando eu era criança, o Barão, que era o dono das fazendas todas daquele lado do rio, tinha um filho único que tinha acabado de voltar da Europa onde fora estudar. O rapaz era rico, estudado, elegante, bonito e jovem — e, quando chegou de viagem, virou a cabeça do povo por aqui. Os pais e as mães de moças de todos os cantos, de todas as vilas da região, queriam casar suas filhas com o rico herdeiro, o barãozinho; e muitas das moças também se interessavam pelo rapaz, sofisticado, educado, bem apessoado que era.

Naquela época, vivia por aqui uma viúva muito ambiciosa, que queria porque queria casar uma das suas filhas com o tal príncipe ilustrado. E ela fez tudo o que pôde para deixar as moças mais atraentes para um rapaz tão chique — educou-as, vestiu-as, perfumou-as, etc.

Só que, naquela época, vivia aqui também uma moça muito bonita e querida por todos. Ela era muito humilde, mas sempre sorridente e generosa. E o rapaz, apesar de conhecer as filhas da sociedade toda daqui e da capital, até de Paris e da Europa, calhou foi de gostar dessa moça tão pobre. E ela dele.

E os olhinhos do moço brilhavam, os da moça retribuíam, e os da viúva fumegavam ao ver o casal se apaixonando. Quando se anunciou pela cidade que o casalzinho planejava noivar, a viúva decidiu interceder: aproveitou-se de um dia que o rapaz saíra para caçar na mata (pois naquela época isso era permitido) e lançou um feitiço terrível que o transformou num lobisomem!

Ele ficou assim por um bom tempo. Ninguém sabia que era o barãozinho, claro; o povo sabia só que o moço sumira na mata e depois vieram os relatos do lobisomem no mesmo lugar: a gente achava era que o monstro tinha comido o rapaz!

E o monstro era mesmo muito feio. Tinha quase três metros de altura, pelo grosso por todo o corpo, as pernas dobradas pra trás, uma garras que pareciam um bico de galo, e uma cabeça enorme com aquela bocarra que nem se fechava, sempre com cara de raiva. Mais de um caçador experiente escapou por um triz da besta e jurou nunca mais pisar naquela mata. Daqueles que a fera matou, se matou, ninguém costuma falar — talvez para não manchar a memória do moço.

Mas a noiva, resoluta, nunca acreditou que o monstro tivesse matado o seu amado. Ela acreditava numa intuição, lá no fundo do seu coração, que dizia que seu noivo vivia e, assim, nutria a esperança de reencontrá-lo em breve. E, num belo dia, decidiu entrar ela mesma na mata para resgatá-lo.

Como exultava a velha viúva! Seu plano saia melhor do que o esperado: a mocinha seria trucidada pelo príncipe enfeitiçado; a viúva, então, o desencantaria, para que ele pudesse se casar com uma de suas filhas — eliminada a concorrência da linda garota — e ela se tornaria a mais rica e poderosa viúva da região.

A moça entrou na floresta e caminhou bastante, procurando sinais de seu amado. Ela caminhou por bosques e clareiras, seguindo o rio enquanto podia, até encontrar um casebre que parecia mais antigo do que o próprio chão da floresta, mais antigo do que as pedras do leito do rio. Ela bateu na porta, que estava aberta, e decidiu entrar. Colocando a cabeça pelo batente da porta, pediu licença e deu de cara com uma senhora que parecia ainda mais velha que o casebre, sentada numa cadeira de balanço imóvel, olhando-a fixamente. E ela disse:

“Com licença, senhora vovózinha, com licença! Por favor, perdoe a minha falta de modos ao adentrar o seu casebre! Mas procuro repouso após uma longa viagem, a senhora poderia me hospedar?”, disse a moça, educadamente.

“Ora, quem é você, moça bonita, que entrou neste casebre tão humilde com palavras e mesuras tão elegantes!?”, respondeu-lhe a velhinha: “Que a sua passagem seja abençoada, este teto, tão pobre, é muito honrado por uma visita tão ilustre!”

A mocinha, você imagina, até chorou de gratidão pela hospedagem da velha que, em velocidade surpreendente, já punha uma mesa com um banquete simples, porém saboroso. Após a refeição, as duas tomaram chá, e a moça contou à velha toda a história de seu romance e de sua busca por seu amado, chorando rios de lágrimas.

Pela manhã, a velhinha abraçou-a, agradeceu-lhe pela companhia e, antes que a moça partisse, orientou-a: “veja, filhinha, siga seu caminho com atenção, observe bem as flores que encontrar, pois por aqui cresce, rente ao chão, um tipo de lírio muito especial, diferente dos outros. Assim que o vir, apresse-se em apanhá-lo. Quando assim fizer, você receberá a ajuda que precisa.”

E a moça seguiu seu caminho, atenta a todas as flores que encontrava. E apanhou muitas flores, que usou para enfeitar seus cabelos, e caminhou até que viu um lindo lírio branco, maior do que o normal, bem no meio do caminho. Ela se apressou para apanhá-lo, mas, quando suas mãos estavam prestes a tocá-lo, ele piscou e desapareceu, reaparecendo um pouco mais à frente. E ela correu para apanhá-lo, e ele piscou surgindo um pouco mais à frente e, assim, a dança dos dois, garota e flor mágica, guiou a moça cada vez mais e mais fundo para dentro da floresta encantada.

Os saltos da flor guiaram a moça até um rochedo que ela escalou sem nem atentar para perigo, encontrando a flor no cume. E, desta vez, quando ela esticou a mão para apanhá-la, a flor não se moveu, e a moça enfim a pegou. Porém, ao olhar em volta, ela percebeu que estava só e perdida, e que escurecia — e por isso ela sentou-se e começou a chorar.

“Por que choras, bela menina?”, disse uma voz doce. Ela olhou e viu quem era: era um velhinho da metade da altura de uma pessoa adulta, curvado e acinzentado, com uma pele tão velha que parecia a casca de uma árvore centenária, com uma longa barba e bigodes brancos. E a moça contou ao velhinho que havia perdido o seu noivo na floresta e que, buscando resgatá-lo, perdera também o seu caminho.

“Faça o que eu te disser”, disse-lhe o velhinho, de maneira assertiva mas benevolente, “e irei te ajudar. A primeira coisa, mocinha, que precisamos é do meu caldeirão — vá até o meu barracão ali e traga-o para nós.” E assim a moça fez.

O velhinho acendeu um fogo e orientou-a a botar um tanto de água para ferver no caldeirão. Quando a água já fervia, ele virou-se para a moça, olhando-a com seriedade no fundo dos olhos, e disse: “Agora, jogue a linda flor que você apanhou assim, assim, assado, no topo do rochedo”.

A moça lamentou ter que abrir mão de uma coisa tão especial, mas assim fez. E não é que, assim que ela jogou a flor no caldeirão, veio, de dentro do bosque, uma voz rouca, grave, urrando como toda uma matilha de lobos?

O lobisomem saiu do meio das árvores e correu em direção à moça. Então o velhinho disse a ela que jogasse todo o conteúdo da panela bem na cara do lobão. A moça deu tantos passos para trás quantos pode e, quando o lobo estava prestes a alcançá-la, virou-lhe o caldeirão com o chá daquela flor aromática bem na fuça do bicho.

O couro do lobo caiu no chão e o bicho, assim, a olhos vistos, tornou-se, de repente, um homem — o homem mais bonito e elegante que ela conhecia, o barãozinho, seu noivo!

O velhinho orientou a moça a jogar aquela pele de lobo no fogo rapidamente, e assim ela fez. Imediatamente, a viúva cresceu grandes dentes e um nariz comprido e orelhas pontudas e pelos e tudo o mais que tem um lobisomem, e saiu aterrorizando a vila, rumo à floresta, onde ela viveu por muitos anos como loba.

A moça e o filho do barão, depois desse reencontro, se casaram, e toda a vila festejou por muitos dias. E eles foram felizes e cresceram muito juntos, e a cidade com eles — e ninguém nem deu muita bola para a loba no bosque, até porque logo depois chegou a fábrica de tecidos e, com ela, a usina, a ponte, a estação de trem, e a mata foi ficando cada vez menor até sobrar só aquele bosque.

Mas é por isso que eu sei que lobisomens existem, porque um dia entrei na mata e dei de cara com um lobo cinzento que arreganhou os dentes pra mim, e que eu sei que era a viúva má da história da moça e do filho do barão!

Fonte

The Werewolf. In: The Swedish Fairy Book. Ed. Clara Stroebe, trad. Frederick H. Martens. New York: Frederick A. Stokes Pub., 1921, pp. 76s. Disponível em: https://www.gutenberg.org/files/37193/37193-h/37193-h.htm#XI.

The Werewolf. In: Fairytalez. Disponível em: https://fairytalez.com/the-werewolf/

Crédito da imagem de capa

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