Angiola

Angiola, uma versão italiana de Rapunzel

Gosto muito dos contos de fadas italianos porque eles são cheios de caos e trazem muitos contos conhecidos em versões bastante distantes. As várias versões de Rapunzel são as minhas favoritas.

Acho que mudei um pouco o destino da bruxa, que sempre sinto muito injustiçada nas histórias do tipo da de Rapunzel. Aqui ela é uma vítima vingativa de jovens delinquentes, dentre os quais a futura mãe biológica, um tanto negligente, de Angiola. Um conto sobre amadurecimento e liberdade, gosto de como, nesta versão, os conflitos se resolvem, por fim, com diálogo e perdão.

Boa leitura!

Naquela época vivia uma velha sábia que, dizia-se, era ou uma ogra, ou vinda dos campos que não conhecemos. Ela sabia mistérios e curas, feitiços e runas, e apesar de sempre receber muitos presentes de todos da vila, na verdade, era muito temida.

Entre a infância, com sua sabedoria selvagem e seus muitos medos, e a idade adulta, com sua preguiçosa certeza de como as coisas são e os receios do novo, há uma idade em que nos sobram a curiosidade e a selvageria infantil, mas em que nos falta a sabedoria da criança e o juízo dos adultos; e, enquanto a velha curandeira era temida e admirada pelos muito jovens e pelos mais velhos, os moços e as moças faziam troça desse respeito e temor de seus pais e dos menores. Vez ou outra, metiam-se, às escondidas, a atormentar a velha, jogando-lhe ofensas, pregando-lhe peças e, raramente, invadindo-lhe o quintal.

Pois, certa vez havia um grupo de sete garotos e garotas que tinham todos mais ou menos a mesma idade, viviam grudados e eram o terror da vila. Por algum motivo, eles haviam crescido assim soberbos, estorvando velhos e crianças impunemente. Eles cresceram tanto em sua valentia que um dia combinaram de entrar na horta da velhinha para roubar-lhe as uvas que, no seu jardim, cresciam do tamanho de um punho.

A velha sábia tinha fama de ser bruxa ou ogra, como eu já disse, porque, entre outras coisas, além de curandeira e futuróloga, tinha um burro falante. O burro vigiava o seu quintal e, apesar de manso, contava à velha sobre invasores ― e, segundo o juízo dos adultos, dizia-se que coisas ruins aconteciam a quem era assim delatado, pois a velha, além de cartomante e jardineira, também era feiticeira e tinha parte com o diabo.

Aqueles jovens organizaram-se de modo que um deles, como precaução, jogou um grande maço de alfafa ou outra grama fresca para o burro, para que este não observasse enquanto os outros pulavam no quintal e enchiam os bolsos e chapéus e aventais e qualquer coisa que pudessem tornar num embornal de uvas.

A bruxa, de volta de suas viagens por onde quer que seja, perguntou ao burro sobre suas uvas, mas ele havia comido sua alfafa e não sabia de nada.

Isso eles fizeram várias vezes, e todas as vezes o burro era enganado e não podia contar à velha quem lhe havia roubado as uvas. Então, num belo dia, a velha decidiu se esconder no quintal ela mesma: havia, no meio do quintal um buraco onde outrora houvera um forno, e ali ela se meteu, cobrindo-se com galhos e folhas e deixando só uma das suas longas orelhas descoberta. Os sete vizinhos foram mais uma vez até o seu jardim, enganaram o burro, e puseram-se a catar as uvas; um deles, vendo a orelha da bruxa, acreditou ser um cogumelo, e a puxou. Então, com mais ódio que agilidade, a velha pulou do buraco, chamando o burro e amaldiçoando os jovens, enquanto corria atrás deles; de todos, ela conseguiu alcançar só uma garota; os demais conseguiram fugir, mas não sem levar um coice do burro ou um ralado da cerca viva que, parecendo querer fazer jus ao nome, parecia se mover para espetar quem passava por pura maldade.

A consciência da tolice juvenil, quando chega, vem de uma vez, e a moça, percebendo o erro, prostrava-se no chão, chorando desesperada, crente de que a bruxa ia devorá-la. A bruxa não fazia questão de dissuadi-la, resmungando e amaldiçoando em volta da bela jovem que implorava por compaixão. A velha, que como se diz, era sábia, soube bem aproveitar o momento e demandou, em troca do perdão, uma terrível condição: a moça deveria dar à bruxa a sua primeira criança, quando ela estivesse com sete anos de idade, fosse menino ou menina. Desesperada por sua vida, a moça aceitou, e assim a bruxa permitiu-lhe partir.

Não se sabe bem o destino dos demais jovens, mas a bruxa, que, como veremos, era poderosa, tanto os amaldiçoou que não me surpreenderia se algo terrível tivesse acontecido com cada um deles.

Algum tempo depois, a moça teve uma linda filhinha que chamou de Angiola, e esqueceu-se das suas travessuras e da promessa feita à velha bruxa.

Sete anos se passaram e tudo ia muito bem, até que um dia Angiolinha encontrou a bruxa em frente ao jardim. Ela chamou Angiola e deu-lhe muitas uvas, dizendo: “Oh! Linda Angiola! Leve estas uvas para sua mãe e diga-lhe que é só um lembrete da promessa que ela me fez!”

Angiola voltou para casa e, assim que viu as uvas grandes como um punho, sua mãe se lembrou de tudo, ficou branca de medo e pensou que havia chegado a hora de entregar sua Angiolinha. Então ela pensou um pouco e disse: “Angiola, querida, quando você reencontrar a sua tia e ela perguntar a resposta, diga-lhe que se esqueceu de me dar o recado!”

No dia seguinte, Angiola encontrou a bruxa esperando-a em frente ao jardim, e agiu como a mãe ordenara; e a bruxa disse que muito bem, mas que não se esquecesse desta vez, novamente enchendo o seu avental de uvas. Assim aconteceu muitos dias, mais de uma semana. Todos os dias, Angiola trazia o recado, todos os dias sua mãe lhe pedia que fingisse ter esquecido, e todos os dias a bruxa fingia acreditar. Até que um dia, cansada e distraída em seus afazeres, a mãe estava desatenta e respondeu a Angiola que “sim, sim, minha querida, claro; diga-lhe para fazer como deseja”. No dia seguinte, Angiola assim fez, e então a velha a pegou, entrou com ela dentro de um pilão e saiu voando, levando-a consigo para dentro do bosque onde ninguém se aventurava.

Ao perceber que a filha se atrasava, sua mãe se lembrou do que lhe dissera no dia anterior, prostrou-se no chão chorando e gritando, estapeando-se e arrancando os cabelos. Pobre mulher. Acho que ela nunca mais soube de Angiola. Nem nós dela.

Pois no bosque, o pilão mágico voou rapidamente até chegar a uma clareira. Comendo uvas, cujo suco escorria pelos seus queixos, Angiola observou a velha fazer riscos na terra com seu cajado, falando com o chão em tom firme e imponente; a viu dançando e ameaçando os espíritos da água, do fogo, da terra e do ar; a viu falar e cantar e gritar em línguas desconhecidas, e riscar e bater o seu cajado muito escuro no chão. Ela viu o chão obedecê-la e erguer-se, aqui e ali, no formato perfeito de uma torre de castelo, alto na floresta encantada. A menina riu e achou aquilo maravilhoso.

E, por algum tempo, foi mesmo maravilhoso. Angiola vivia na torre, e a bruxa a tratava com muito amor, como se ela fosse a sua própria filha. No entanto, Angiola era proibida de descer da torre, que não tinha porta ou escadas, e só tinha abertura no alto. A própria bruxa precisava de ajuda para subir quando saía (porque ela tinha que cuidar de seu jardim, e catar ervas e ingredientes no bosque, e tratar do seu burro falante), e chamava Angiola ao pé da torre: “Angiola, Angiolinha, desça suas belas trancinhas!” E Angiola, que possuía lindos e longos cabelos, jogava as tranças por sobre um gancho na janela, e a velha escalava a janela, içando-se pelos cabelos de Angiola torre acima.

(Você pode estar se perguntando sobre o pilão mágico da bruxa: ele voava rápido, não alto.)

Presa naquela torre, Angiola cresceu para tornar-se uma moça bonita e simpática. Aprendera, com a bruxa e o burro (que viera passar seus últimos anos morando na torre e nessa altura já havia morrido de velho), assim como pelos muitos objetos da torre (pois todos eram encantados e sabiam falar), muitas coisas: línguas e canto, etiqueta e história, bordado e estratégia militar, um pouco de alquimia e geografia, teologia e astrologia: tudo o que uma verdadeira princesa aprenderia, e muito mais. Ela vivia entediada e sentindo-se uma prisioneira, pois a bruxa não aceitava sequer cogitar deixá-la sair, sempre lhe dizendo que ela não estava ainda pronta para isso.

Num belo dia, Angiola sentou-se à janela, triste e solitária (pois os objetos só falavam com ela quando a bruxa assim ordenava), e cantou uma canção bela e melancólica sobre a solidão. Acontece que, naquele dia, o filho do rei decidira caçar no bosque proibido. Despistou seus guarda-costas e embrenhou-se nas árvores antigas ― e é claro que ele se perdeu. Já caminhava pelo bosque há dois dias, com fome e sede, sem conseguir se orientar nem pelo sol nem pelas estrelas (é assim, dizem, que se chega aos campos que não conhecemos, à terra além da colina: perdendo-se), quando ouviu aquela linda voz. Parecia a voz de um anjo! Ele pensou que assim fosse, que um anjo da guarda vinha para guiá-lo no bosque perdido; e seguiu aquela linda voz, chegando ao pé da torre.

O príncipe ficou ali ao pé da torre observando Angiola cantar até que, escondido, viu a bruxa chegar e chamá-la: “Angiola, Angiolinha, desça suas belas trancinhas!” Ele esperou que a bruxa fosse embora e chamou também, como ela, “Angiola, Angiolinha, desça suas belas trancinhas!” Angiola desceu suas tranças, ele escalou a torre segurando-se nelas e chegou ao quarto de Angiola.

Angiola ficou muito assustada, mas o príncipe dirigiu-se a ela de maneira educada e respeitosa, explicou ter admirado muito a sua voz e sua beleza e disse estar apaixonado. Angiola disse-lhe que aquilo era tolice, que ele não podia deixar-se apaixonar por alguém que não conhecia e sentou-se para conversar com ele. Eles fizeram isso por muitos dias, conversando e conhecendo melhor um ao outro, até que o desejo virou uma verdadeira paixão e a paixão transformou-se em amor e eles decidiram que viveriam juntos, fora da torre da bruxa. Então, Angiola pegou três rolos de linha mágicos da bruxa, cortou e amarrou seus longos cabelos na janela, e ela e o príncipe fugiram da torre. Com eles foi também o gato da bruxa, que era mágico como fora o burro, e que se afeiçoara, com o tempo, à garota.

Sempre que o príncipe vinha visitá-la, Angiola dava às mesas, cadeiras e armários algo para comer, pois eles eram encantados, como já disse, e poderiam delatá-la à velha bruxa. Contudo, havia uma vassoura que ficava atrás da porta, e que ela não viu, e por isso não lhe deu nada de comer; a vassoura observara todos os encontros e planos em silêncio.

Quando a bruxa chegou, estranhou encontrar os cabelos já dependurados e subiu muito brava, pronta para repreender Angiola pelo descuido. E se um belo príncipe, perdido enquanto caçava cervos mágicos no bosque, a encontrasse!? Mas ela não encontrou ninguém na torre. “Onde ela está? Onde está minha linda Angiola?”, ela perguntou às cadeiras, mas elas haviam comido as balas que Angiola dera-lhes e não sabiam de nada. “Onde ela está? Onde está minha linda Angiola?”, ela perguntou às mesas, mas elas haviam comido os caramelos que Angiola dera-lhes e não sabiam de nada. “Onde ela está? Onde está minha linda Angiola?”, ela perguntou aos armários, mas eles haviam comido pirulitos que Angiola dera-lhes e não sabiam de nada. Então ela perguntou à vassoura, “Onde ela está? Onde está minha linda Angiola?”, e a vassoura contou-lhe tudo.

A bruxa então pegou seu pilão mágico, alimentou-o com raízes e sementes secretas, vindos das partes mais profundas do bosque mágico, e o pilão soltou faíscas como uma lâmina de aço saindo da forja, e cuspiu labaredas como uma nuvem carregada de tempestade, e rugiu como um urso faminto, e a bruxa entrou em seu pilão assim encantado e saiu voando mais veloz do que o vento na direção que a vassoura havia apontado.

Vendo que a bruxa os alcançaria, Angiola jogou o primeiro dos rolos de linha mágicos no chão, e ele transformou-se numa montanha muito alta para parar a bruxa; mas ela cochichou algo para o pilão que fez esforço redobrado e atravessou a alta montanha, continuando no encalço dos apaixonados.

Então, Angiola jogou a segundo bola de linha, e ela se transformou numa chuva de unhas e garras de todos os tamanhos que feriram todas a pele da velha bruxa enquanto ela e seu pilão mágico a atravessavam, continuando no encalço dos apaixonados.

Quando viu a bruxa aproximando-se novamente, Angiola atirou o último rolo de linha, que se transformou numa onda gigante que acertou a bruxa, apagando o fogo do pilão e levando-o embora. A velha bruxa tentou nadar para atravessar aquela corrente, mas a água se espalhava e as margens ficavam cada vez mais distantes até que a bruxa teve que desistir e voltar para trás. Em sua fúria, ela voltou-se à filha e amaldiçoou-a: “Que seu rosto lindo torne-se o rosto de um cão!” e o rosto de Angiola imediatamente ganhou um focinho, barba e bigodes, e seus dentes cresceram e ficaram pontudos e seus olhos ficaram grandes e ela tinha agora o rosto de um cão.

O príncipe disse que a amava com rosto de mulher ou de cachorro e jurou, apesar da recusa de Angiola, não voltar para o seu reino enquanto ela assim não desejasse. Eles construiram uma choupana na floresta, onde viveram daquilo que a floresta oferecia, sempre tentando encontrar alguma solução para o encantamento. Até que um dia o gato que os acompanhara disse: “Não chore, bela Angiola. Irei à bruxa e implorarei que ela remova o encanto.”

Então o gatinho atravessou a floresta e nadou o largo rio e atravessou um campo de unhas e garras e escalou uma montanha alta até chegar à torre onde a bruxa vivia sozinha com sua mobília encantada. O gatinho circulou entre os pés da bruxa, de rabo empinado, e a velha disse: “Ah! Você está de volta, seu safado! Você não me trocou pela ingrata Angiola?” O gato tanto se esfregou e ronronou e lambeu seus dedos que a velha bruxa acalmou-se e pegou-o no colo. E o gato disse: “Mãe, Angiola manda cumprimentos. Ela está muito triste, pois não quer ir para o reino do príncipe com a cara de cachorro!”

“Bem feito para ela”, disse a bruxa. “Por que ela quis me enganar? Que fique com cara de cão!” Mas o gato implorou, “Por favor, maẽzinha, por favor, liberte nossa Angiolinha do feitiço!” e miou de um jeito tão sentido, que a convenceu de que a pobre Angiola já havia sido castigada o bastante. A velha pegou um frasco de água e conversou com ele em línguas esquecidas, dando-o ao gato e dizendo-lhe: “Leve isso a ela e ela se tornará a bela Angiola outra vez”. O gato pegou o frasco de água e correu de volta a Angiola, e agora não havia mais montanha, nem garras, nem rio, pois o encanto do frasco também cancelava a mágica dos rolos de linha, e o logo o gato chegou ao casebre de Angiola. E ela lavou o rosto naquela água encantada e, quando se enxugou, o rosto de cão desaparecera e ela tornou-se bela de novo, mais ainda do que fora antes. Então ela e o príncipe foram ao seu reino, onde se casaram, com a bênção do rei e da rainha, pais do príncipe, e da velha bruxa, mãe de Angiola, e todos foram felizes por muitos anos.

Fonte

Laura Gonzenbach, “Von der schönen Angiola,” Sicilianische Märchen: Aus dem Volksmund gesammelt, vol. 1 (Leipzig: Verlag von Wilhelm Engelmann, 1870), no. 53, pp. 339-44. Trad. Thomas Frederick Crane, Italian Popular Tales (London: Macmillan and Company, 1885), pp. 26-30. Adaptação e edição digital de D. L. Ashliman em https://www.pitt.edu/~dash/type0310.html#crane

Crédito da imagem de capa

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