Almanaques

Este conto é o meu primeiro original aqui no Leste do Sol. Não é uma adaptação de contos de fadas conhecidos, mas foi criado com eles em mente.

A história desta história é que ela foi inspirada por um tweet do @MagicRealismBot, um robô que junta frases aleatórias para formar prompts de histórias de realismo mágico. O tweet era algo assim: “Um caçador compra um feitiço de uma bruxa. Ele faz com que ela esqueça cada almanaque que ele tiver lido.” (https://twitter.com/MagicRealismBot/status/1346259266907213826?s=19) Eu não sei se não prestei atenção ao jogo de pronomes (ela se esquece dos almanaques que ele lê) ou se a história queria que eu a escrevesse assim. Mas conto a história de uma bruxa que paga com a sua memória o preço mágico pelo feitiço que vende ao caçador.

O manuscrito teve o seu ciclo: com a ajuda da Júlia Abdalla na tradução, tentei publicar uma versão em inglês do conto em uma série de revistas, sem que ele encontrasse a sua casa em nenhuma delas. Por fim, submeti a sua versão inglesa a um concurso do Reedsy Prompts (Almanacs – A Fantasy Short Story by Henrique Pasti – Reedsy Prompts) e decidi publicar o original em português aqui, no Leste do Sol.

Como disse, tirei a ideia de um tweet; já o casebre da bruxa, ele foi inspirado bem de perto na edícula da minha avó paterna; a sua demência, na de minha avó materna. Relendo-o, hoje, quero sentir, no tema, estilo e voz, a influência de Tehanu, de Ursula K. Le Guin — quem sabe, se eu tiver sido abençoado pelas musas.

É um conto de fadas sem algumas das estruturas mais convencionais — o final feliz, por exemplo, ou talvez sim. Por favor, diga o que achou da leitura: ainda mais do que nas adaptações, tem bastante de mim nesta história, e espero poder que ela toque outras pessoas tanto quanto escrevê-la me tocou.

Um grande abraço, boa leitura!

O caçador chegou ao velho casebre carregando numa vara o equivalente em peles e carne a duas semanas boas de caça: havia muitas peles de lebres e texugos e raposas, carne salgada de javali, lebres, coelhos, peixes defumados, banha, algumas aves caçadas naquele dia, tudo embalado em couro fresco. Ele bateu na porta, e a velha dona gritou-lhe que entrasse: ela já tinha visto nas runas que ele viria. 

Ele cumprimentou-a com respeito e reverência, chamando-a pelos títulos mais nobres que podia conceber: mãezinha, tia, avó. Ele sempre fora respeitoso com ela, como, em geral, acabam sendo todos com o passar dos anos; mas ele sempre fora respeitoso, não precisando da insistência do tempo para aprender a temer e respeitar a bruxa: aprendera com a mãe e as tias, que tinham uma prima cheia de dons misteriosos, e que vinham de uma longa linhagem de mulheres sábias.

Ele vinha com um pedido. Desde menino, apesar de quieto e calmo, sempre fora ambicioso: queria ser o melhor caçador da região, e assim fora. Mas, apesar da seriedade e da sobriedade que lhe eram características, ele também apreciava olhar para as estrelas e sonhar com lugares mais distantes, com campos e bosques além dos campos conhecidos e com presas maiores e mais velozes. E, mais de uma vez, imerso na profundidade do bosque, ele avistara alguma criatura mágica: uma fênix, um basilisco, um troll. Na última lua cheia, porém, o que ele viu passou a habitar os seus sonhos, desperto ou adormecido: um unicórnio, branco como a neve, irradiando a luz do luar, com um longo chifre na testa estrelada, que pastava calmamente — e que, ao menor ruído, desapareceu, encontrando, nalguma encruzilhada ou dentro do oco de alguma árvore desconhecida, o caminho de volta para seu reino fantástico.

O caçador queria revê-lo, e vinha pedir à velha bruxa o conhecimento de como encontrá-lo. A bruxa não podia ensinar o caminho que, além de ter de ser encontrado por cada um, não garantia acesso ao unicórnio — que não era arisco apenas nos campos que conhecemos, mas também, e talvez especialmente, em sua terra natal; ela também não podia ensinar-lhe como atrair o animal para o lado de cá das colinas: havia juramentos, e o risco era de que outros seres mágicos assim se vissem convocados e que os encontros fossem perigosos. O que ela podia fazer não era muito e ela não achava que o caçador aceitaria: ela podia dar-lhe um feitiço que lhe permitisse sonhar com o animal quando quisesse, e da maneira que escolhesse. Ele poderia sonhar que o caçava, ou que o montava; que era sua presa, ou mesmo que era o próprio unicórnio. E o rapaz gostou da ideia e quis que a velha lhe ensinasse o feitiço — e prometeu, em pagamento, uma parte considerável de suas peles, e carne que nunca faltaria à bruxa.

A bruxa já estava muito velha. Ela já havia vivido o suficiente para ter visto o parto da maioria dos aldeões de três vilas em torno do bosque, e sentia o seu corpo falhar em muitas ocasiões. Segundo o seu código, ela precisava habitar dentro do bosque, distante de todos, e a cada dia ficava mais difícil conseguir alimento, água, suprimentos. As carnes do caçador e o lucro das peles viriam-lhe bem a calhar. Então, ela aceitou e, com um gole da aguardente de alguma raiz desconhecida do bosque, os dois selaram o pacto.

A magia sempre cobra o seu preço, senão em valor igual ao bem alcançado, em custo maior. Porque é assim que se mantém o equilíbrio das coisas: fosse mais barato obtê-las por meio da arte ela não o seria, e haveria ainda outra maneira, ainda mais complicada, de obtê-las. E assim seria porque para as pessoas mais inclinadas aos mistérios, as coisas tem sempre explicações ocultas e maneiras mais engenhosas ou cerimoniais, sempre secretas, de se fazer.

Por conta desse preço, sempre mais alto, sempre misterioso, a bruxa aprendera a usar, sempre, de parcimônia no emprego da sua arte. Ela poderia ter invocado, sem grande dificuldade, um unicórnio bem ali, naquela hora — mas a que preço? Com que criatura de poder, com que trevas ela teria de ter negociado a produção do nobre animal?

Ela oferecera ao caçador muito mais do que outrora estaria disposta a dar, apesar de muito pouco. No entanto, mesmo aquele feitiço singelo também cobraria o seu preço.

A velha bruxa não tinha o que ceder naquele casebre: ao longo do tempo, tudo ali havia encontrado um lugar e só se mantinha dentro da casinha o que um dia seria utilizado. Aquela tábua servia para cobrir metade do caldeirão pequeno de cobre quando fervia... Couro? Carne? Pano? Quem sabe. Aquele arame servia para amarrar as cortinas quando se improvisava um banho, uma defumação ou algo do tipo; as grandes folhas de couro de vaca dobradas, surradas, e mantidas em cima do guarda-roupas serviam para cobrir o chão onde secava o milho no inécio do inverno; a corrente amarrava o portão quando visitava as suas irmãs no final do outono; cada panela tinha o seu uso específico: esta servia para doces, essa para remédios, aquela para carne de caça, a outra para patos; os velhos caixotes, que há décadas carregaram frutas, hoje carregava o pó dos anos enquanto esperavam ser usados para transportar roupas doadas; a vassoura longa servia para varrer o teto, a curta o chão de madeira, a espevitada, o de cimento queimado, a vassourinha pequena varria o cocô dos gatos e a areia que espalhavam; este trapo fechava frestas na porta, aquele, na janela. Outro fechava o bico da torneira do tanque, outro ainda servia para limpar os pés de gatos preguiçosos. Havia uma cadeira para deixar casacos e toalhas, outra para sentar-se para cortar as unhas, e outra para ler. Comia-se sentada no longo banco de madeira. Um avental servia para a cozinha, outro para o tanque, e um casaco cobria tudo quando tratava-se de trabalhar artes ocultas. Os vidros, de diferentes formatos, só a mente da bruxa podia catalogar. Havia muitos garrafões, todos  iguais, de vidro escuro e palhas surradas de uma mesma cor; este ficava à esquerda, era de vidro vermelho e tinha água fresca do poço; aquele era de vidro esverdeado e ficava à direita, contendo amoníaco; outro tinha vinho, outro álcool, outros a velha fingia saber o que continham — mas só sabia que não deveriam conter o que precisava. Havia cartões e folhas de papelão destinados a cobrir certas janelas, ou a forrar a caixa quando chocavam os pintos, ou a cobrir o chão da horta quando o inverno vinha; os velhos almanaques, empilhados sob o gabinete dos cristais, cujas previsões ela já havia memorizado — tendo aprendido deles as datas de eclipses e equinócios e solstícios, e as das festas cristãs e pagãs de várias eras —, hoje forneciam papel para limpar-se na latrina.

Ela pegou os livros de suas antecessoras, o seu caderno, e folheou-os até encontrar algo: o feitiço desejado. Estava no livro de sua tia-avó, que lhe havia ensinado a maior parte da arte, e à qual ela mesma sucedera; trazia um aviso rabiscado de que custava conhecimento. A bruxa, então, pôs-se a trabalhar. Juntou, na mesa, ingredientes impossíveis: uma gota de suor de um ovo, um cílio do orvalho, unhas da alvorada, um beijo da primeira neve do inverno que vem. Amarrou-os numa elaborada cama-de-gato, acrescentando coisas corriqueiras: um brinco de ouro, uma pena de corvo, ervilhas, um caroço de cereja. E, então, falou com aquilo tudo. Falou numa voz firme palavras de ordem numa estranha língua esquecida. E as cordas giraram em suas mãos e as coisas chocaram-se umas contra as outras, e, desses encontros, desapareciam, e os barbantes pareciam balançar no vento, como se uma chama invisível os consumisse de baixo pra cima até que, sacudindo os dedos, o último pedaço de linha se foi, e a velha bruxa parecia ainda mais velha e cansada. 

E ela deu ao caçador uma bola de vidro preto que apareceu dentro da mão que segurara os barbantes, e que brilhava ao contrário, reluzindo no escuro e parecendo opaca contra a luz, e disse a ele: “Está feito”.

Ela ensinou-lhe como esfregar a bola de vidro quando fosse dormir para ter os sonhos desejados, e o rapaz partiu satisfeito.

Os dias passaram e a bruxa não via a cobrança chegar. Até que um dia chegou o solstício de verão e ela havia se esquecido dele. E os deuses antigos do bosque, há muito adormecidos, inquietaram-se, e por uma semana houve confusão entre as estações, pois a bruxa não havia cuidado dos ritos necessários. E houve muitas consequências: aves que morriam em pleno vôo ou que botavam antes de fazer o ninho; porcos que atacavam os seus donos e que fugiam gritando até bater a cabeça em alguma árvore e cair mortos; algumas sementes mofaram no pé, enquanto algumas mudas amadureceram muito antes do tempo. Mas tudo acabou se resolvendo no final.

E então veio o inverno, e a bruxa não havia se preparado. E o frio pegou-a desprevenida e ela adoeceu, silenciosamente, sozinha ali no casebre dentro do bosque, e por pouco não foi o seu fim. Depois veio a estação de apanhar ervas e ela se esqueceu dos nomes de muitas delas. E quando saía à cata de cogumelos, não sabia mais distinguir os venenosos dos inofensivos. E ela se esqueceu dos nomes das nuvens, dos ventos e das estrelas. E, um dia, esqueceu-se das palavras antigas e das runas, e dos nomes secretos das coisas.

Até que folheou os velhos almanaques, estocados para serem destinados à higiene pessoal, e os livros de suas avós, e relembrou-se da arte e das datas e dos nomes das coisas; mas, cada vez que o caçador sonhava com seu unicórnio, ela voltava a se esquecer das coisas que a faziam ser quem era.

E, como o apetite do jovem caçador pelo desconhecido era maior do que a disposição da velha bruxa por relembrar o conhecido, ela perdia cada vez mais e mais saberes. E chegou um dia em que deixou de ser bruxa porque não sabia mais a sua arte, e logo deixou de lembrar-se de tudo, exceto de uma noite de paixão, numa festa com dança, dos olhares e do toque de um rapaz que ela às vezes acreditava estar ao seu lado e com quem ela conversava, ou de alguma conversa da infância, quando ficava chorosa e falava com sua mãezinha, morta já há muitos séculos. Até que ela só ria, ria baixinho consigo mesma, sentada na porta da choupana do caçador que, por pena, cuidava para que passasse em algum conforto os seus últimos dias. E, embora aquilo fosse contrário aos seus votos, ela não se importava porque não se lembrava mais deles.

Crédito da imagem de capa: Fotografia minha, de 2007