O ferreiro e o diabo

Esta é uma versão do mais antigo conto de fadas que conhecemos: a história de como um ferreiro astuto consegue enganar o próprio diabo. Eu gosto muito que seja assim: que a história mais longeva que registramos como espécie foi a de uma pessoa que consegue o que quer — viver mais, sem dívidas — ludibriando o mais poderoso e, assim, dando um desfecho feliz à sua sina!

Boa leitura!

Era uma vez um ferreiro muito fanfarrão, que vivia na folia e diversão, e que gastou toda a fortuna que fizera (naquela época, ser ferreiro, imaginem, era como ser um engenheiro, um médico, um doutor) no boteco com os amigos. Nisso, ele perdeu tudo o que tinha — a ferraria, a forja, as bigornas e ferramentas, a casa, o terreno que tinha, tudo. Danado da vida, desgostoso, desesperado, um dia decidiu dar um basta em tudo: apanhou uma corda e embrenhou-se no bosque em busca de um galho firme onde poria fim à sua vida.

Depois de escolher um galho forte, mal começara a firmar a corda onde planejava se matar, surgiu, bem de trás da árvore, um homem alto, fino como uma vareta, com um sorriso estranho cujos olhos não acompanhavam que disse: “Fulano!” (porque ninguém lembra o nome do ferreiro, mas o homem sabia), ele disse, “coloque o seu nome no meu livro e viva com riquezas sem fim por mais dez anos! Eu te dou os anos e a riqueza, e só o que quero em troca é o seu compromisso: em dez anos, nos encontraremos novamente, você vai amarrar a sua corda nesta árvore e eu o levarei comigo lá para... baixo.”

“E quem diabo é você, meu senhor?”, perguntou-lhe o ferreiro.

“O próprio, ao seu dispor”, disse o diabo, fazendo uma respeitosa mesura.

“E como eu vou acreditar nisso? Como você prova que é capaz de me oferecer isso e aquilo?”

E o diabo então fez-se tão alto quanto a mais alta das árvores naquele bosque só para logo a seguir encolher até o tamanho de um ratinho no chão da floresta. Fez um sapateado ainda pequenininho, agradeceu ao seu espectador desconfiado e voltou ao seu tamanho normal.

O ferreiro Fulano aplaudiu admirado o feito mágico do demônio, mas ele era um bom negociante e quis pedir um agradinho extra ao tinhoso.

“Eu topo se você me conceder mais um desejo: estou cansado de ver as minhas riquezas roubadas bem debaixo do meu nariz. Quero que encante este saco para que nada que eu não permitir possa sair ou ser dele retirado!”

O diabo achou foi pouco, e assim fez. E o ferreiro assinou o nome no livro que sumiu com uma labareda, junto com seu dono, que só deixou a gargalhada ameaçadora atrás de si. Quando o ferreiro chegou em casa, encontrou muitos baús cheios de dólares e barras de ouro! Ele quitou todas as dívidas, mantendo as suas propriedades, e só não digo que resgatou a dignidade porque a gastava toda noite na gandaia, o beberrão. 

E assim, desse jeito que ele considerava ser feliz, ele levou os dez anos que barganhara com o capeta: bebendo, rindo, cantando e brincando no bar com os amigos. 

Dez anos se passaram, assim, num estalar de dedos!

E, assim, num final de tarde um belo dia, bateram na porta, e eis que era o estranho magricela, com o sorriso perturbador de sempre.

“Ferreiro Fulano! Chegou a sua hora, meu amigo! Prepare-se para a jornada.”

E o ferreiro disse que sim, está bem. Pegou um saco e botou a corda nele, e saiu seguindo o diabo até o bosque. Quando chegaram à árvore, ele pegou a corda e a preparou no galho da árvore escolhida. Mas antes de mais nada olhou para o homem que assobiava ao seu lado e disse:

“Espere um pouco, eu quero certificar-me de que você é quem diz ser. Como pode provar que é o mesmo com quem fiz aquele acordo dez anos atrás?”

E o diabo riu-se e fez-se gigante, ainda mais alto desta vez, só para imediatamente tornar-se miudinho como um gafanhoto — e assim que o fez, o ferreiro jogou-o para dentro do saco encantado, amarrou a boca e, apanhando um galho grosso no chão, encheu o diabo ensacado de pancada!

O capeta, preso dentro do saco, gritava e chorava e implorava para o ferreiro parar.

“Tudo bem, meu senhor, eu posso deixá-lo sair, com uma condição!”, disse o ferreiro: “Que você me devolva a página do seu livro onde assinei o meu nome!”

E desceu o cacete no diabo de novo.

O diabo, cansado de apanhar, concordou; e o ferreiro abriu o saco e queimou a folha que assinara, anulando o pacto que fizera com o demônio dez anos atrás.

O diabo foi embora danado da vida, chateado, machucado, furioso. Mas ele é um sujeito de palavra e nunca mais quis saber do ferreiro.

O ferreiro viveu ainda uns bons anos além daqueles dez que arrancara do diabo, feliz e contente, até que um dia, já velho, dormiu para não mais acordar. No seu caixão, ele havia pedido para deixarem apenas um martelo e um punhado de pregos, e assim foi feito.

Chegando no paraíso, bateu no portão, mas ninguém quis abrir para ele, pois ele era mal visto no céu por ter tido parte com o tinhoso. Então, ele deu de ombros e foi até o inferno.

Lá chegando, porém, não quiseram abrir para ele, pois o diabo tinha ainda muita raiva e não queria saber do ferreiro. Então, o ferreiro começou a martelar aquele enorme portão de ferro, fazendo um barulho infernal. Até que um diabinho irritado abriu o portão para reclamar — e o ferreiro pegou-o pelo nariz e lau!, pregou o diabinho pelo nariz no portão.

O monstrinho urrou de dor até que veio um segundo — e o ferreiro, sem pestanejar, pregou também esse pela orelha no portão.

Então Lúcifer veio irritadíssimo até o portão para ver o que estava acontecendo, dando de cara com o ferreiro Fulano, seu desafeto. E o ferreiro apontou o martelo bem na cara do diabo e ordenou-lhe que resolvesse logo onde seria o lugar do seu repouso, ou o ferreiro iria pregar todos os demônios do inferno até Lúcifer não ter mais em quem mandar.

O diabo subiu até o céu e exigiu uma audiência: ele não queria saber do ferreiro e atormentaria o paraíso até que permitissem que o ferreiro ali ficasse.

E não sei que acordo fizeram, mas o que dizem é que desde então o ferreiro repousa no paraíso, em paz, até o fim dos tempos.

Fonte

Um estudo filogenético de Silva e Tehrani (2016) encontrou evidência de que esse conto pode ser rastreado até a Idade do Bronze, cerca de 6.000 anos atrás, o conto mais antigo de que se tem notícia. 

A fonte desta versão é dos irmãos Grimm, “Der Schmidt und der Teufel”, in Kinder- und Haus-Märchen, v. 1, 1812, pp. 360-364, que consultei no compilado pela Wikisource

Fonte da imagem de capa

A imagem de capa é de um catálogo de profissões de 1504: Hausbuch der Mendelschen Zwölfbrüderstiftung, Band 1. Nürnberg, 1504, https://www.nuernberger-hausbuecher.de/75-Amb-2-317-120-r/data