Votan, Vili e Vé e a criação do mundo

Gylfaginning, parte 1

Desta vez trazemos a primeira parte do Gylfaginning, “Votan, Vili e Vé e a criação do mundo”

Odin tem se tornado meu personagem favorito dos muitos mitos e lendas. Ele valoriza a sabedoria acima de tudo: sacrificou um olho em troca de conhecimento e fez um sacrifício de si para si mesmo, pendurando-se ferido por nove dias em Yggdrasil, a árvore-mundo da mitologia nórdica, em troca de aprender a usar a magia das runas. Muito esperto, representando mais o arquétipo do mago do que o do rei, ele também funciona como o mais dominante dos arquétipos: talvez, em parte, pela função de senhor da guerra, provavelmente herdada de outros deuses (como Tyr), ou talvez por ser um dos mais astutos dos deuses.

Sua contraparte, Loki, é também um astuto trickster; tem a função de mostrar as falhas e incoerências dos deuses, e de sabotar seus planos em troca de uma boa risada. A diferença entre as duas astúcias está no trono mesmo: não dá para imaginar Loki governando nada, só destruindo.

Esta é a história de como Gylfe, enganado por uma Aesir, visita o seu reino em busca de conhecimento, tentando enganar os deuses; mas acaba sendo enganado pelo mais astuto dos deuses em tornar-se seu primeiro fiel. E Odin faz isso disfarçado de rei dos Aesir, descrevendo-se como um terceiro, como o maior dos deuses, o mais elevado de todos. “Fake until you make it”, fingir até tornar-se, ele nos ensina aqui.

Da adaptação

Eu cheguei ao Gylfaginning em busca do mito viking de criação, para uma série sobre mitos de criação. Aqui, nesta primeira parte, o trio que se apresenta como Superior, Tão-Superior-Quanto e Terceiro (os três são Odin) para o rei Gylfe, disfarçado como o velho Ganglere, narra a criação do cosmos, da terra e do oceano, da Terra dos Gigantes, e a criação dos humanos por Odin e seus irmãos Vili e Vé.

Adaptei alguns nomes que o tradutor da edição inglesa que consultei não traduz: Superior para Hár, Tão-Superior-Quanto para Jafnhárr, e Terceiro para Þriði. Usei a forma anglo-saxã ou em alemão antigo, Votan, para o nome de Óðinn, para fazer o par sonoro com seus irmãos menos famosos, Vili (que significa “vontade”) e (que tem o sentido de “sagrado”). Tentei fazer jus à sinfonia de nomes que o Pai-de-Todos (Mestre-dos-Possuídos, Urso, Olho Brilhante, Filho de Bor, Lanceiro, O-Que-É-Muitos, Escondedor, Antigo, Mascarado, Encapuzado, Senhor-dos-Enforcados, Superior, Sábio, Barba-Longa, Inimigo do Lobo) recebe ao nomeá-lo de maneira ambígua, sem uso constante, na narrativa. Outros personagens fui escolhendo caso a caso.

Boa leitura!

Era uma vez um rei chamado Gylfe. Ele era o rei do que hoje é a Suécia — mas seu reino era maior do que a Suécia é hoje, pois ele perdeu um pedaço de seu reino para uma mulher do povo dos Aesir (que são os deuses). Foi assim: ele ofereceu a essa mulher, como pagamento pelas histórias que ela havia lhe contado, um quinhão de terras férteis em seu reino, tanto quanto quatro bois pudessem arar em um dia. A mulher, então, apareceu com quatro bois do tamanho de montanhas, que eram filhos dela com um gigante, e botou-os para arar, e eles cortaram a terra tão fundo, que ela se rompeu e flutuou para o Oeste. Lá ela criou um país chamado Zelândia.

Nem a sabedoria do rei Gylfe, que era muito sabido e versado em magia, era páreo para a esperteza dos Aesir! Ele tinha muita curiosidade sobre aquele povo e decidiu visitar o seu reino para descobrir de onde vinha a sabedoria deles.

Então ele viajou disfarçado de velho para Asgard, o reino dos Aesir, que fica mais ou menos no céu. Mas os Aesir vêem no futuro e não podem ser facilmente enganados, e previram a sua chegada antes mesmo de ele partir, e armaram um golpe para pegá-lo.

Chegando em Asgard, o rei Gylfe encontrou um salão tão alto que quase não se podia ver o seu teto, que é forrado de escudos dourados. À porta, um homem que fazia malabarismo com sete espadas ao mesmo tempo perguntou-lhe o seu nome. O rei Gylfe mentiu e disse chamar-se Ganglere, que era um viajante e que procurava hospedagem para a noite. Também perguntou de quem era o castelo. E o homem respondeu:

— É de nosso rei. Irei com você vê-lo e você pode perguntar a ele mesmo qual o seu nome.

O homem guiou o rei Gylfe para dentro do magnífico salão. Lá dentro, ele observou pessoas bebendo, cantando, comendo e lutando, tudo em muita festa. Então, chegaram ao centro do Salão, e ali havia três assentos, um acima do outro e, em cada um, um homem sentado. Eles se apresentaram, e disseram-lhe que o que se sentava no assento mais baixo chamava-se Superior, o do assento do meio, Tão-Superior-Quanto, e o terceiro, Terceiro.

Superior perguntou ao visitante o que ele queria e convidou-o a comer e beber, pois a comida e a bebida no salão de Superior eram para todos. O Rei Gylfe perguntou se havia algum sábio ali, e Superior respondeu:

— Você não sairá daqui saudável a não ser que esteja mais sábio! — e riu.

Ganglere, que era o rei Gylfe disfarçado, então perguntou:

— Quem é o mais velho e mais elevado dentre os deuses?

Superior respondeu:

— Seu nome é Pai-de-Todos, em nossa língua. Mas na Asgard de outrora, chamavam-no de doze nomes:

o primeiro é Pai de Todos,

o segundo, Guerreiro, ou Sabujo;

o terceiro, Perfurador;

o quarto, Destruidor;

o quinto, Sábio;

o sexto, Desejado;

o sétimo, Retumbante;

o oitavo, Agitador de Lança ou Agitador de Escudos;

o nono, Fechador ou Portador do Sono;

o décimo, Sereno;

o décimo primeiro, Tempestuoso;

o décimo segundo, Castrador.

— Onde está esse deus? O que ele pode fazer? O que ele já realizou?

Tão-Superior-Quanto respondeu:

— Ele vive desde a eternidade até a eternidade, governa por todo o seu domínio, e rege todas as coisas, grandes ou pequenas. Ele fez o céu e a terra, o ar e todas as coisas neles.

E Terceiro:

— O mais importante: ele fez os humanos e deu-lhes a alma, que há de viver e jamais perecer, mesmo que os corpos virem cinza e pó. Todos que vivem em virtude haverão de habitar com ele em Gimle, o campo paradisíaco, ou Vingolf, a morada dos deuses.

— O que ele fazia antes de ter feito terra e céu?

— Ele vivia com os gigantes de gelo — disse Terceiro.

— Como o mundo surgiu? O que havia antes?

Respondeu-lhe Superior:

— Reza a profecia que

Era a manhã do tempo,

quando nada havia;

Nem areia, nem mar,

Nem ondas frias.

Terra não havia,

Ou céu acima.

Era o Ginungagap,

Mas grama não existia.

Então, Tão-Superior-Quanto começou a dizer:

— Muito tempo antes da terra ser criada, existia o reino frio e escuro de Nilfheim. No meio desse reino existe um poço chamado Hvergelmer, do qual fluem muitos rios.

E Terceiro completou:

— Além de Niflheim, havia um outro mundo ao sul, que se chamava Muspelheim, um lugar cheio de luz e de fogo, de calor tão intenso que ninguém pode suportar. Só há um guardião, Surt, nativo dali, capaz de suportar o calor: ele possui uma espada de fogo e no fim do mundo virá a frente, matará todos os deuses e queimará o mundo com fogo.

— O que aconteceu antes dos humanos surgirem? — perguntou o rei Gylfe.

Superior contou a Gylfe como os respingos das águas gélidas dos rios de Nilfheim viraram geada e flutuaram, formando camadas de gelo ao encontrarem o ar morno que vinha de Muspelheim, e como, no vão entre Nilfheim e Muspelheim, formou-se assim o domínio de Ginungagap. Tão-Superior-Quanto contou-lhe como, ali onde frio e calor se encontraram, formaram-se gotas e como essas gotas se juntaram uma a uma por milhares de anos até ter a forma de um homem, o gigante Ymir, que os gigantes de gelo chamam de Aurgelmer.

— É esse o deus de quem vocês falam? Criador do céu e da terra? É ele o criador das pessoas?

Superior cuspiu no chão e elevou a voz, já embriagado do fabuloso hidromel daquele castelo:

— Insolência! Jamais consideramos Ymir um deus! Puro mal, Ymir e sua prole, os gigantes de gelo! Só maldade e destruição veio dele. Dizem que, enquanto ele dormia, do suor de seu sovaco esquerdo nasceu um casal, e que um de seus pés engravidou o outro de um filho homem. Desses monstros nascidos de seus pés e do suor de seu sovaco vieram os gigantes de gelo.

— Mas, então, senão esse Ymir, quem criou os humanos?

— Essa já é uma história mais longa e complicada… — riu-se Superior.

Os três homens se ajeitaram em seu trono triplo, beberam mais um chifre de cerveja, e começaram a narrar. A algazarra de antes parecia ter cedido lugar a um agradável silêncio: em torno de Ganglere, o estranho visitante, e do trono de seus anfitriões havia agora uma animado círculo de pessoas ouvindo.

— As gotas em Ginungagap não formaram apenas o velho gigante; elas também juntaram-se formando uma vaca, chamada Audhumbla, de cujos úberes corriam rios de leite dos quais Ymir e seus filhos se alimentavam. Ela, por sua vez, lambia pedras de sal cobertas de gelo — disse Tão-Superior-Quanto.

— No primeiro dia em que ela lambeu as pedras de sal, apareceu de dentro de uma delas o cabelo de um homem; no segundo dia, sua cabeça; e, no terceiro, o homem todo. Era um homem alto, forte e belo, chamado Buri. — acrescentou Terceiro. E disse:

— Como Buri teve um filho ninguém sabe mais explicar… Mas, de alguma maneira, Buri produziu Bor, que se casou com uma mulher chamada Beatla, filha do gigante de gelo chamado Bolthorn, e teve com ela três filhos: Votan, Vili e — disse Superior.

Quando Superior pronunciou aqueles nomes, muitos chifres e canecas foram erguidos, vivas foram gritados, pés pisaram o chão com força, alguém batia forte num escudo.

— Creio —, disse Terceiro, — que Votan e seus irmãos são os governantes do céu e da terra. Cremos que esse é o seu nome, pois nunca ouvimos falar de alguém maior ou mais glorioso do que eles; especialmente o mais velho, que é o maior e mais famoso dentre os homens, sendo conhecido por muitos nomes, mais do que aqueles em que o chamamos em Asgard, como: Pai-de-Todos, Cinzento, Caolho, Feliz-de-Guerra; Barba-Longa, Chapéu-Largo, Calmo, ou Marrento; Viajante, Conhecido, Inimigo do Lobo; Ocultador, Sábio, Pai das Canções Mágicas, o Suspenso, Odin.

Superior então, com ar grave e elevando a voz, disse:

— Sim, e o mais famoso de seus feitos foi matar o gigante Ymir com uma facada!

Ouviam-se leves risos, sons de surpresa, na multidão. Sorrindo, após assegurar-se de ter a atenção de todos, Superior continuou sua narração:

— Um dia, Votan, ou Odin, Vili e Vé mataram o gigante Ymir com uma facada. O sangue que jorrou do corpo do gigante foi tanto que causou um imenso dilúvio naquele deserto gelado, Ginungagap, matando todos os gigantes de gelo — exceto por um, Bergelmer, que era muito esperto e caprichoso e que havia construído uma arca, e que sobreviveu ao dilúvio, sendo o antepassado de todos os gigantes de gelo que existiram desde então.

— Os três filhos de Bor, então, mataram o gigante: isso faz deles os seus deuses? Que mais fizeram Votan, Vili e Vé para merecer a sua adoração? — perguntou Gylfe.

Superior respondeu, demonstrando alguma impaciência:

— Ora, criaram tudo o que existe! Eles pegaram o cadáver de Ymir, levaram ao centro de Ginungagap, e tornaram-no o mundo: de seu sangue, fizeram os mares e rios; de sua carne, fizeram a terra; de seus ossos, as pedras; de seus dentes e ossos quebrados, fizeram os seixos e pedregulhos.

Tão-Superior-Quanto acrescentou:

— Eles pegaram o sangue e fizeram os mares, e criaram um anel em torno da carne, que seria a terra, com esse sangue, formando os oceanos — e era tanto o sangue que ninguém pode atravessá-lo navegando.

E Terceiro disse:

— Eles também pegaram o seu crânio e fizeram o céu ser a parte de dentro dele. Eles o penduraram sobre a terra com quatro cantos, e colocaram um anão de guarda em cada um desses cantos; é do nome desses anões que surgiram os nomes dos pontos cardeais: Austre nomeou o leste e Vestre, o oeste; Sudre, o Sul e Nordre, o Norte. E os três filhos de Bor pegaram brasas que voavam de Muspelheim e fixaram-nas no firmamento: algumas ficavam fixas, outras giravam, outras dançavam correndo. Diz-se que naquele tempo o Sol não sabia qual era a sua morada, nem a lua a dela.

— E, além do oceano, eles fizeram terras para os descendentes de Bergelmer, os gigantes de gelo; mas, para proteger o mundo dos ataques dos gigantes, construíram uma muralha além do oceano, circulando toda a terra e as águas do que chamaram Midgard, com as sobrancelhas de Ymir. E pegaram seu cérebro e jogaram no céu para formar as nuvens; e criaram as árvores dos cabelos de Ymir e as plantas de seus pelos — disse Superior.

Ganglere, o velho que era o rei Gylfe disfarçado, então perguntou:

— Muito bem, eles fizeram o mundo que conhecemos; mas vocês disseram que eles criaram os humanos. Contem essa história também!

— Os filhos de Bor caminhavam pela praia do mar que haviam feito, eles encontraram duas árvores, que eles usaram para criar duas pessoas. Cada um deu aos primeiros humanos uma coisa: Odin deu-lhes a alma e a força vital; Vili deu-lhes a inteligência, movimento e o tato; e Vé deu-lhes expressões, a fala, a audição e a visão. Os irmãos nomearam o homem Freixo e a mulher Olmo. Deles descende toda a humanidade — respondeu Superior.

Então, Tão-Superior-Quanto disse:

— Então, os filhos de Bor fizeram uma cidade para si no centro do mundo, que se chama Asgard. Lá viviam os deuses e seu povo. Há um lugar em Asgard, chamado Lidisquialfe donde Odin observa o mundo inteiro e sabe todas as coisas que as pessoas fazem.

E Terceiro completou:

— Sua esposa Frigg é a filha de Fjorgvin e deles descende todo o povo que chamamos de Asas ou Aesir, os deuses, que habitam Asgard. E por isso é que chamamos Odin de Pai-de-Todos, porque ele é o pai de todos os deuses e humanos.

Fonte

“Gylfaginning” In: Snorri Sturluson. The Younger Edda: Also Called Snorre’s Edda, Or The Prose Edda. Chicago: S. C. Griggs and Company; London: Trübner & Co., 1880, pp. 49-151 Disponível em: https://archive.org/details/youngereddaalsoc00snoruoft/page/49/mode/1up Versão digitalizada disponível na Wikisource, https://en.wikisource.org/w/index.php?title=Prose_Edda&oldid=6876568

Crédito da imagem de capa

Wikimedia Commons contributors, "File:Ymir gets killed by Froelich.jpg," Wikimedia Commons, the free media repository, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?title=File:Ymir_gets_killed_by_Froelich.jpg&oldid=671012366 (accessed September 9, 2022).