Irmãos de sangue

Um conto esquisito de matador de dragões, onde irmão desconhece irmão

Este é um conto antigo e atestado em inúmeras fontes europeias. Adaptei a versão compilada por D. L. Ashliman.

Contém: patriarcado, fratricídio, etc. 😅

Boa leitura!

Era uma vez um pescador que, num dia, pescou um peixe com um rosto de pessoa. O peixe olhou para ele e disse-lhe que, se o soltasse, ele lhe realizaria um desejo.

O pescador, então, soltou o peixe de volta n água. O peixe virou-se e disse-lhe que lançasse novamente a sua rede e que desse o que pescasse à sua companheira, e partiu. Assim fez o pescador e pegou um peixinho que levou para casa e assou para a sua esposa comer. O pescador tinha uma cachorra, para quem serviu as entranhas do peixe, e uma égua, em cuja ração ele misturou  as espinhas moídas.

Passados nove meses, a esposa do pescador deu à luz um par de gêmeos fortes e saudáveis, que foram antecedidos por um par de filhotes da cachorrinha, e sucedidos por um par de potrinhos da égua.

Os meninos cresceram fortes e inteligentes, enchendo os seus pais de alegria. Porém, quando ficaram jovens, o mais velho sentia-se mais e mais inquieto, desejando conhecer o mundo e ansiando por aventuras. Então, ele pediu ajuda à velha sábia da vila onde viviam, que deu a ele uma garrafa de vinho encantado para dar ao seu irmão, orientando-o. E ele disse ao caçula:

“Irmão, preciso partir para conhecer o mundo; fica com esta garrafa de vinho branco: ele se tornará vermelho se algum dia eu precisar de ajuda.”

O rapaz, então, montou no cavalo mais velho e, acompanhado do cachorro mais velho, partiu em busca de aventuras.

Ele viajou bastante e nenhuma aventura era páreo para sua valentia. E todos que encontrava diziam-lhe: “se isto aqui não te assusta, viaja assim, assim e assado, até um reino um pouco mais longe que vem sendo dizimado por um dragão — aquilo, sim, é que será uma boa aventura!” Ele viajou até o tal reino e, ali chegando, soube que o rei oferecia uma rica recompensa para quem vencesse a terrível besta.

O rapaz, então, decidiu atacar o dragão em seu covil. A luta demorou muitos dias e noites. Nela, perecerão o cavalo e o cachorro, seus quase irmãos, pelo menos de encantamento, e em mais de uma ocasião, o príncipe acreditou que seria o seu fim. Mas ele persistiu e a sua persistência prevaleceu sobre a fúria destrutiva do monstro, que ele conseguiu enganar com um estratagema e matar com um golpe de sua espada no coração do bicharoco.

O rapaz decidiu cortar a língua do monstro e levá-la consigo — pois, sem cavalo, não poderia carregar mais do que aquilo. E partiu, mesmo cansado, caminhando até o castelo do rei.

Acontece que havia um dos mensageiros do rei que o seguira até a fortaleza do monstro, e que havia observado tudo. O homem vil decidiu cortar a cabeça do dragão e levá-la até o rei, para reivindicar a autoria da matança ele mesmo.

Esse covarde chegou ao castelo antes do filho gêmeo mais velho do pescador, e apresentou o imenso crânio monstruoso como prova de seu feito. O rei, muito impressionado com o tamanho do bicho, parabenizou e agradeceu o seu ministro e mandou chamar a princesa, cuja mão ele presentearia ao matador de dragões.

Nessa hora chegou o filho do pescador. Ele ouviu tudo pacientemente, mas, antes que o rei fechasse o acordo, disse: “Mas que dragão esquisito esse, sem língua! Eu podia jurar que tinha ouvido a sua voz...”

“Como assim, seu trouxa bobalhão!”, disse o conselheiro do rei, “que dragão haveria de não ter língua?” — e abriu a bocarra do monstro, só para descobrir que não havia língua dentro dela.

E o rapaz jogou no chão aquela língua que mais parecia uma jiboia, e disse: “Pois o dragão que eu matei e cuja cabeça está aí, ele tinha língua e eu a cortei e a trouxe comigo até aqui!” 

Todos entenderam que o rapaz havia provado o seu valor, e que o conselheiro havia sido um canalha. Ele foi posto nas masmorras, onde ficou preso por algum tempo, enquanto o rapaz ganhou um banquete, uma coroa, e a mão da bela princesa em casamento.

O rapaz foi feliz por um tempo até que ficou inquieto de novo. Ele tinha ouvido falar de um bosque de onde ninguém voltava, o Bosque Sem Volta, e decidiu que seria o primeiro a provar que dali se voltava, sim. A sua esposa, a princesa, pediu-lhe que não fosse, mas a sua teimosia e espírito de aventura venceram o bom-senso e, assim, ele partiu para a terrível floresta.

Mal entrara na floresta, o rapaz encontrou uma simpática velhinha que cumprimentou-o com uma mesura. Ele fez um gesto de desprezo e seguiu o seu caminho sem dar atenção à velhinha — e ela, então, o enfeitiçou com uma maldição, transformando-o em pedra ali mesmo.

Enquanto isso, na casa do pescador, o gêmeo mais novo observava a garrafa de vinho branco todos os dias e fazia suas orações pelo irmão aventureiro. Porém, naquele dia, o vinho tornou-se vermelho da cor de sangue, e o caçula soube que seu irmão estava em apuros. Sem nem se despedir direito dos seus pais, ele montou no cavalo mais jovem e, acompanhados do cachorro mais novo, partiram em busca do gêmeo perdido.

E eles viajaram por muitos lugares procurando o irmão mais velho e, depois de muita procura, acabaram chegando num reino onde, apesar de falarem outra língua, as pessoas eram muito generosas, e o tratavam como se fosse um velho conhecido; e, dentro os estranhos hábitos daquele povo, o mais estranho deles é que o banharam e o puseram para dormir no quarto da princesa do reino.

(Ele não sabia, mas as pessoas o estavam confundindo com o seu irmão desaparecido! Elas pensavam que ele estava confuso depois de passar pelo bosque amaldiçoado.)

Ele não sabia o que estava havendo então dormiu no chão de pedra, sem olhar para a princesa, com quem não conseguia conversar, e que se sentiu muito triste e confusa vendo quem ela pensava ser o seu companheiro tão confuso.

E, na manhã seguinte, ele partiu antes do sol nascer em direção à floresta amaldiçoada, em busca do irmão desaparecido.

Lá chegando, ele foi recebido por uma simpática velhinha, que o cumprimentou. Ele desceu do cavalo, cumprimentou-a com uma mesura e perguntou-lhe do paradeiro do irmão. A bruxa respondeu-lhe que sabia, sim, do rapaz, que fora mal educado e imprudente ao adentrar o seu bosque, o bosque sem volta, sem respeito nem nenhum presente.

O jovem ofereceu à bruxa o seu cavalo, mas ela pediu-lhe o cachorro. “Só o que me falta aqui é companhia”, ela disse. E o cachorro logo se afeiçoou a ela. Então, ela guiou o rapaz até a estátua de pedra em que ela havia transformado o seu irmão, tirou de um bolso um vidrinho de um unguento perfumado que ela passou no nariz da estátua e — atchim! a estátua deu um espirro violento e voltou a ser um rapaz de carne e osso.

Os irmão se abraçaram e choraram e se abraçaram, felizes pelo reencontro. Na volta do bosque, eles dividiram histórias das suas aventuras: o mais velho contou sobre como matara o dragão e cortara a sua língua e ganhara a recompensa do rei e a mão da princesa... O caçula contou-lhe de como vira o conteúdo da garrafa avermelhar-se e partira no encalço de seu irmão, de como foi recebido numa estranha cidade como se fosse conhecido, como até a princesa o recebera em seu quarto.

Quando o irmão entendeu que o caçula estivera em seu reino, ficou verde de ciúmes, e achando que o irmão dormira com sua esposa, cortou-lhe a cabeça de um golpe da espada que matara o dragão.

Ele seguiu seu caminho, montado no cabalo mais novo, até chegar ao reino de seu sogro. Lá, encontrou a sua esposa que ficara feliz por revê-lo e disse: “Que bom vê-lo de volta a si, não como da última vez, em que você não falava comigo e dormira no chão, longe de mim!”

Então, o rapaz entendeu que havia degolado o próprio irmão injustamente. E ele chorou e gritou e estapeou-se, arrancando os próprios cabelos e se estapeando no chão. E, quando se acalmou, correu para o lugar onde havia cortado a cabeça de seu irmão, pegou-o no colo e correu de volta para dentro do bosque gritando pela velhinha.

A senhora prontamente apareceu para ajudá-lo, pegou outro vidro de unguento, que esfregou no cotoco do pescoço do rapaz, e colocou a cabeça de volta no lugar, cochichando algo em seu ouvido antes de beijar-lhe a testa. E onde havia o corte, a pele se fechou e os olhos do antigo cadáver se mexeram e se abriam, cheios da vitalidade do irmão.

E os irmão ficaram amigos de novo e voltaram ao palácio, onde foram felizes por muito tempo.

E eu sei que a história parece mentira, mas eu mesmo estava lá, roendo os ossos que me dava a minha nova dona, a velha bruxa, rainha do bosque!

Fonte

Esse conto é atestado em muitas diferentes fontes europeias. A que adaptei aqui é a versão coletada por D. L. Ashliman, disponível em: <https://sites.pitt.edu/~dash/type0303.html>.

Créditos da imagem de capa

Wikimedia Commons contributors, "File:Hylestad I, right - Fafnir and Sigurd.jpg," Wikimedia Commons, the free media repository, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?title=File:Hylestad_I,_right_-_Fafnir_and_Sigurd.jpg&oldid=502126579 (accessed September 11, 2022).