A vingança da Selkie

O conto de hoje é o de uma Ariel mulher-foca com sangue nos olhos

Há muitas histórias deste tipo: no folclore europeu continental, a protagonista é muitas vezes uma mulher-cisne, cujo casaco de penas é roubado por um rapaz, com quem ela se casa, mas aprende a ser feliz; noutros folclores, ela é uma pavoa. No caso da Escócia e das Ilhas Faroe, ela é uma mulher foca, ou uma selkie: uma pessoa transmorfa que vive a maior parte do tempo como foca, mas capaz de retirar a sua pele e transformar-se em pessoa.

Gostei desta versão, que é de uma lenda da Ilhas Feroe, porque ela não vive feliz com o seu captor, mas volta em busca de vingança.

Da Adaptação

Mudei bastante a história de modo que será uma leitura inédita. Não quero estragar, mas, na nossa fonte, a história termina diferente: o pescador caça o marido e os filhos foca da selkie, que volta para assombrá-lo depois.

Boa leitura!

Muitos e muitos anos atrás, num lugar chamado Ilha do Norte, contava-se a história (que pouca gente podia confirmar) de que na noite do dia de Reis, numa certa praia de difícil acesso ao leste da ilha, podia-se avistar um grupo de focas que chegavam, despiam-se das suas peles de foca, tornando-se pessoas, e dançavam e cantavam e brincavam na água até o Sol surgir, quando voltavam a entrar nas suas peles e mergulhavam no mar para só voltar no ano seguinte.

Essa lenda era conhecida de todos, mas poucas pessoas se sentiam confortáveis para falar desses estranhos visitantes — pois se acreditava que traziam má sorte ou que se ofendiam facilmente, e que a sua vingança era sempre severa. Por isso mesmo, evitava-se aquela praia, às vezes todas as praias, na noite de Reis.

Contudo, lendas são difíceis de acreditar e de tempos em tempos precisam ser confirmadas. Sempre surgem pessoas mais incrédulas, ou atrevidas, que não se deixam levar pelas crendices dos outros. Certo dia, um homem, que não era mais que um rapazote e que se acreditava ou mais valente, ou mais esperto que os demais, decidiu ver com os próprios olhos se aquela história era verdadeira.

Então ele escondeu-se atrás de uma pedra na praia proibida, e esperou cair a noite, e espiou a chegada do povo foca.

Eles chegaram num bando de vinte, trinta focas enormes. Elas subiam nas pedras cantando, e despiam-se das suas peles, revelando-se pessoas de todos os tipos: jovens e velhas, gordas e magras, altas e baixas, de peles, cabelos e olhos de todas as cores e formatos, de todos os gêneros — a única coisa que tinham em comum era o fato de saírem do seu couro de foca e de cantarem e dançarem muito felizes.

Uma delas despiu-se bem próximo de onde o rapaz estava, revelando, por baixo do couro de foca, a mais bela garota que ele já vira. O rapaz sentiu-se imediatamente apaixonado e disse para si mesmo que havia de tê-la para si — pois há gente que não conhece o amor e só sabe sentir obsessão e desejar os outros para si. Então, assim que ela voltou à água para brincar com os demais, o rapaz afanou a sua pele de foca e a escondeu.

As pessoas foca brincaram, cantaram e dançaram a noite toda. Quando o Sol despontava no horizonte, elas buscaram, uma a uma, as suas peles de foca, vestiram-nas e mergulharam de volta no mar. A moça voltou para o lugar onde se despira, e começou a procurar pela sua pele — no começo, ela procurava despreocupada, mas conforme o tempo passava, alarmava-se mais e mais. Quando a última foca partiu e o Sol já iluminava a praia, ela sentiu uma mão agarrar o seu pulso, e um forte puxão virou-a para encarar um rapaz que a fitava ameaçadoramente.

“Eu peguei a sua pele!”, ele disse, “e você jamais a verá novamente! Agora, você vai se tornar a minha esposa e viver comigo, aqui, como uma humana para sempre!”

Ela olhou-o horrorizada. “Mas eu sou do mar!”, ela disse, “E não posso viver aqui!” Ela ajoelhou-se no chão, implorando-lhe, “Não me detenha aqui, por favor! Pelo bem da minha família, liberte-me imediatamente!”

O homem, porém, não se comoveu com as suas súplicas, puxou-a pelo pulso e agarrou-a, carregando-a para a sua casa enquanto dizia “Não, não, você será minha e de mais ninguém! Eu amo você, entendeu? Eu amo você e jamais a deixarei! Nunca!”

Apesar da moça jogar-se no chão e implorar que ele lhe devolvesse a sua pele e a deixasse voltar para o mar, o rapaz levou-a para a sua casa.

Com o tempo, a moça acabou por resignar-se à sua condição de prisioneira, compreendendo que as suas súplicas eram em vão. Às vezes, ele era assustador, agressivo e violento, e ameaçava matá-la e agredi-la; às vezes, tornava-se afável, carinhoso e gentil, e chegava a chorar declarando-se apaixonado.

O tempo passou e a moça aprendeu a suportar a sua situação: o seu marido era, na maior parte do tempo, bondoso, e olhava-a com gentileza e admiração — desde que, é claro, ela evitasse deixar os seus olhos se perderem na nostalgia e nas saudades de casa, fitando longamento o mar, ou que evitasse deixar que os vizinhos a vissem chorando perto da praia; nessas horas, ele tornava-se, novamente, violento e ameaçador. Então, ela aprendeu a manter-se ocupada com a casa ou com as duas crianças que ela gestara com o seu algoz, sempre que ele estava por perto, assim como aprendeu como esgueirar-se para a praia a fim de se encontrar em segredo e confabular melancólica com uma enorme foca que vinha sempre visitá-la. Em muitas noites, quando ele estava fora, depois de pôr as crianças para dormir, ela escondia as facas, apagava o fogo e, depois de certificar-se de que as crianças estariam seguras, corria para a praia, protegida pela escuridão, e cantava uma canção melancólica que dizia que um dia ela voltaria, ah!, se voltaria! O tempo passava e ela levava essa vida, se é que podemos chamá-la assim, triste, e suportava a situação como podia.

O homem mantinha a sua pele trancada num baú e deixava a chave dependurada num prego que estava sempre à vista, levando-a consigo sempre que saía para pescar. A moça aprendera a evitar olhar diretamente para a chave, quer esta estivesse pendurada no prego ou no pescoço do rapaz, apesar da atração quase magnética com que a chave atraía o seu olhar. Assim, ela nunca perdia a chave de vista, sempre atenta à menor oportunidade de escapar, mas só a olhava com o canto do olho para evitar que o homem ficasse violento — pois este sabia que não possuía o coração da sua esposa ― que, no fundo, não era mais que a sua prisioneira.

Houve um dia em que um vizinho apareceu chamando o rapaz: havia um cardume de arenques como nunca se vira a pouca distância da costa! “Depressa, pegue as suas redes e vamos para o barco!” O homem pulou, calçando as botas enquanto corria para fora com o vizinho — e, naquela pressa, deixou a chave pendurada na parede.

A moça mal podia se conter, mas, temendo que ele se lembrasse da chave e voltasse repentinamente, esperou até o entardecer. Para manejar a ansiedade, ela procurou manter-se ocupada e terminou todas as tarefas que tinha a fazer na casa, como se nada de novo houvesse. Ela cerziu e limpou, cozinhou e lavou roupas, organizou a despensa e cuidou dos animais. Então, ela banhou as crianças e as alimentou, abraçou-as apertado e levou-as à casa da vizinha cujo marido viera convidar o seu captor para pescar.

A vizinha a recebeu surpresa, chamou-a para entrar e, pela primeira vez na vida, ela contou a sua história. Ela narrou tudo o que lhe ocorrera sem interrupção, mesmo quando lágrimas desciam pelas suas bochechas, e quando lágrimas desciam pelas da vizinha, e ela contou à vizinha coisas que nenhum humano jamais ouvira, sobre o reino de onde viera, e contou a ela sobre o seu legítimo marido foca, e sobre os seus filhos foca, que ela não via há quase dez anos, e sobre como fora mantida prisioneira por todo o tempo que a vizinha a conhecera. Ela pediu à vizinha que cuidasse dos seus filhos enquanto o pai delas não vinha, pois havia a oportunidade de voltar à sua família marinha, e que ficasse de olho nas crianças depois, prometendo voltar sempre que possível para visitá-las — e as duas mulheres se abraçaram longamente, e se tornaram mais do que amigas, irmãs, ao selar com lágrimas e abraços aquele pacto.

Depois ela correu para a casa, pegou a chave e abriu o baú. Após tirar a sua pele, ela encheu-o com as roupas e os pertences do homem, arrastou-o para fora e pôs fogo no baú. Então, ela correu até a praia, onde encontrou a enorme foca a esperando, e vestiu-se na sua pele e mergulhou e as duas focas se abraçaram e choraram e riram e cantaram de alegria pelo reencontro antes de desaparecerem no mar.

Era o meio da noite e a pescaria ia maravilhosamente bem quando o homem deu-se pela falta da chave. “Perdi a minha mulher!”, ele gritou de repente, e ordenou aos outros que voltassem. Quando se aproximaram do cais o homem nem esperou atracarem o barco e saltou na água, correndo no escuro da madrugada até a casa.

Quando chegou, o baú ainda fumegava. “Mulher!”, ele gritava, e outras coisas, coisas horríveis de se dizer de alguém. A vizinha, sobressaltada com os gritos, foi até os filhos do homem e cantou-lhes canções de ninar. O homem batia portas e janelas e gritava furioso.

O homem, que apesar de ser um homem mau, era muito querido na comunidade, que de nada desconfiava, tornou-se uma pessoa estranha, soturna. A opinião dos vizinhos era que a mulher tirara a própria vida naquela noite, e que o pobre vizinho havia tido uma premonição no meio do mar. A vizinha, prezando pela segurança das crianças, não contava nada a ninguém. Assim passou algum tempo — mas não a obsessão do pescador.

Ele passou a se especializar em caçar focas. Toda noite, ele saía e não descansava enquanto não pegava ao menos uma. A cada semana, ele caçava de cinco a dez focas e, quando tinha sucesso, ria com uma crueldade que revirava os estômagos dos seus colegas e vizinhos. Ele esfolava as focas cantarolando, muitas vezes ainda vivas, sentindo um prazer sádico e doentio ao fazê-lo.

Certa noite ele acordou sobressaltado com uma estranha sensação: havia uma lâmina encostada em seu pescoço, e um trapo foi enfiado na sua boca. Os seus braços e as suas pernas estavam amarrados à cama e, à sua frente, com um olhar feroz, a moça foca encarava-o furiosa. Então ela disse:

“Homem cruel, monstruoso, ouça o que eu lhe digo. Vim buscar os nossos filhos e vou levá-los comigo! Eles tornar-se-ão focas como eu, como o meu marido e os meus filhos, de cujo convívio você privou-me por dez anos, e você nunca mais vai vê-los, nem a mim e nem aos meus. Ouça, homem horroroso, você nunca mais tocará noutra foca — senão por medo da minha vingança, pelo medo de, sem saber, maltratar aos seus próprios filhos!”

Então ela foi à vizinha, com quem tinha deixado as crianças, e levou-as à praia. Lá chegando, pegou três capas de pele de foca. Ela cortara duas capas menores da sua própria pele para as dar às crianças; vestiu-as, que se tornaram focas e mergulharam no mar, encontrando-se com a grande foca e outras duas focas menores, que as acolheram. Vestiu-se com a sua pele, ou com o que restara dela, tornando-se metade foca, metade pessoa, e mergulhou atrás dos filhos para desaparecer no mar.

O homem foi libertado pelo vizinho na manhã seguinte. Ele foi avistado queimando suas armas e ferramentas de caça, enquanto amaldiçoava os céus e os mares, e os que o viram depois dizem que parecia louco, que falava sozinho e que se descuidava. Ele deixou a fazenda para nunca mais ser visto na Ilha do Norte.

E na noite do dia de Reis… Nessa noite, dizem, ouvem-se os cantos e danças do povo foca que, liderados pela mais bela sereia, reúne-se na praia para cantar e dançar — sem nunca serem incomodadas por ninguém!

Fontes

Adaptado da tradução de Simon Roy Hughes, “The Seal Girl’s Revenge”, Norwegian Folktales. Disponível em: https://norwegianfolktales.blogspot.com/2020/08/the-seal-girls-revenge.html?m=1.

Crédito da imagem de capa

Wikimedia Commons contributors, "File:Selkie statue in Mikladalur.jpeg," Wikimedia Commons, the free media repository, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?title=File:Selkie_statue_in_Mikladalur.jpeg&oldid=627958279 (accessed September 10, 2022).